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Digo-vos a vós, minhas filhas e meus filhos, que fostes chamados por Deus a constituir uma família, que vos ameis, que tenhais sempre um pelo outro o amor apaixonado que tínheis durante o namoro. Tem um pobre conceito do matrimónio, que é um ideal e uma vocação, quem pensa que a alegria acaba quando começam as dificuldades e contratempos que a vida traz consigo.

É então que o amor se revigora, se torna mais forte que a morte: fortis est ut mors dilectio75. As torrentes das penas e das contradições não conseguem extinguir o verdadeiro amor: une-vos mais o sacrifício generosamente compartilhado – aquæ multæ non potuerunt extinguere caritatem76 – e as muitas dificuldades, físicas ou morais, não poderão extinguir o carinho.

O vosso matrimónio será, regra geral, muito fecundo. E, se Deus não vos concede filhos, dedicareis mais intensamente as vossas energias ao apostolado, que vos dará uma fecundidade espiritual esplêndida. O Senhor costuma coroar as famílias cristãs com uma coroa de filhos, como vos tenho dito muitas vezes. Recebei-os sempre com alegria e agradecimento, pois são uma dádiva e uma bênção de Deus e uma prova da sua confiança.

Notas
75

Ct 8,6.

76

Ct 8,7.

* «não é cristão recomendar»: São Josemaria está a propor um ideal muito elevado de vocação matrimonial, um chamamento à santidade, no meio de um clima cada vez mais permissivo, que se estava a difundir na sociedade ocidental dos anos sessenta. Não quer que se entenda a continência periódica como um método contracetivo "católico", que se pudesse aplicar sem ter em conta os aspetos médicos, humanos e espirituais que tal opção comporta para cada pessoa. Por isso dirá, no parágrafo seguinte, que em casos concretos «poderá e deverá mesmo ser permitido», mas recomendará aconselhar-se com o médico e o sacerdote. Deseja ajudar aqueles que procuram viver cristã e santamente o seu matrimónio, e que ao mesmo tempo têm necessidade de distanciar os nascimentos. Em geral, as suas palavras seguem a orientação pastoral e a praxis moral católica em vigor entre 1959 e 1966, datas em que a Carta está datada e foi impressa, como se pode ver nalgumas obras de teologia moral desses anos, que se encontravam na biblioteca pessoal de São Josemaria. Esta doutrina foi precisada e aperfeiçoada depois pela encíclica Humanae vitae (1968) de São Paulo VI. A Humane vitae alude aos «sérios motivos» que devem dar-se para utilizar os métodos naturais ao querer distanciar os nascimentos (cf. n. 16). Ao mesmo tempo, a encíclica explica que esses métodos não devem ser deligados da “paternidade responsável” e da virtude da castidade. Na altura em que saiu esta Carta de São Josemaria, havia um debate teológico sobre a questão e o próprio Magistério estava ainda a precisar a sua posição, na linha já indicada em 1965 pela Gaudium et spes (n.50-51) do Concílio Vaticano II. O atual Catecismo da Igreja Católica, n. 2369-2370 recolhe a formulação da Humane vitae, enriquecida pelo Magistério de São João Paulo II. (N. do E.)

* «com palavras muito fortes»: recordemos que São Josemaria escrevia para pessoas que conheciam bem o seu modo de falar, franco e sem disfarces. Ao mesmo tempo, com alguma frequência, na sua pregação e nos seus escritos usou a hipérbole, para sublinhar um ensinamento, como quando dizia que acreditava nos seus filhos mais que em mil notários unânimes (cf. En Diálogo con el Señor, op. cit., p. 282), ou que preferia, antes de murmurar, cortar a língua com os dentes e cuspi-la para longe (citado por Javier ECHEVARRÍA, homilia, 20 de junho de 2006, em "Romana" 42 [2006], p. 84) e tantos outros exemplos de grande efetividade expressiva. Modos de dizer hiperbólicos, que obviamente não pretendia que fossem levados à letra. Quem estivesse familiarizado com o amor de Escrivá pelos seus pais e conhecesse a sua capacidade de perdoar e a sua compreensão pelas fragilidades humanas, que é patente nos seus escritos, a começar por esta Carta, poderia deduzir que jamais cumpriria o que aqui diz. Mas São Josemaria quer usar «palavras muito fortes» para sensibilizar os seus leitores para o drama que vivem os que descobrem ser filhos não desejados. Um problema grave, existencial e psicológico, que se abate especialmente sobre a nossa sociedade, após a enorme difusão dos métodos contracetivos e das práticas abortivas, a partir da chamada revolução sexual, que já se encontrava às portas quando São Josemaria escreveu estas palavras. Quer deixar claro que o modelo de santidade que propõe para as pessoas casadas inclui um «amor limpo» entre os cônjuges e um grande amor pelos seus filhos, sem medo da prole que Deus lhes quiser enviar, exceto por graves motivos. (N. do E.)

* «não haverá no mundo senão negros e católicos»: uma frase que deve ser entendida no contexto histórico da reivindicação dos direitos civis nos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960, quando a Carta foi escrita. Esses anos coincidiram com a difusão das medidas de controlo da natalidade na América do Norte, que para os ativistas afro-americanos, escondiam um propósito racista. Os católicos também se opuseram a tais medidas, embora por razões morais. A irónica frase citada por Escrivá pretende troçar dos preconceitos racistas e antipapistas, frequentemente partilhados por alguns setores da população, os quais lamentavam a maior taxa de natalidade de afro-americanos e católicos. São Josemaria aproveita a oportunidade para ridicularizar o racismo mostrando – por redução ao absurdo – a sua insensatez e a de toda a discriminação por motivos religiosos.

Em meados dos anos 60, era normal na América referir-se aos afro-americanos como "negro" (plural “negroes”). Martin Luther King Jr., Malcolm X e outros ativistas antirracistas faziam-no com naturalidade, tal como a opinião pública em geral, como se pode comprovar no famoso livro de Robert PENN WARREN, Who Speaks for the Negro? Nova Iorque, Random House, 1965, contemporâneo da Carta, onde se recolhem entrevistas aos principais líderes do movimento pelos direitos civis.

Em 1972, um afro-americano perguntou a Escrivá como melhorar o seu apostolado com os da sua raça (na transcrição lê-se que o jovem disse "apostolado com os negros", vocábulo que em espanhol não tinha o significado pejorativo que agora tem noutras línguas). Temos a resposta de São Josemaria: «Olha, meu filho, diante de Deus não há negros nem brancos: todos somos iguais, todos iguais! Amo-te com toda a minha alma, como amo este e aquele, e todos. É preciso superar a barreira das raças, porque essa barreira não existe! Somos todos da mesma cor: a cor dos filhos de Deus», notas de uma reunião, 3 de abril de 1972, em Crónica (1972), vol. 5, p. 106-107. (N. do E.)

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