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O trigo e o joio

Tracei-vos, com a doutrina de Cristo, não com as minhas ideias, um caminho ideal para o cristão. Concordais que é elevado, sublime, atractivo. Mas talvez nos. interroguemos: será possível viver assim na sociedade de hoje?

É certo que o Senhor nos chamou em momentos em que muito se fala de paz e não há paz: nem nas almas, nem nas instituições, nem na vida social, nem entre os povos. Fala-se continuamente de igualdade e de democracia e abundam as castas: fechadas, impenetráveis. Chamou-nos num tempo em que se clama pela compreensão e a compreensão brilha pela sua ausência, inclusivamente entre pessoas que agem de boa fé e querem praticar a caridade, porque - não esqueçais - a caridade, mais do que em dar, está em compreender.

Atravessamos uma época em que os fanáticos e os intransigentes - incapazes de admitir as razões dos outros - se põem a salvo, tachando de violentos e agressivos os que são as suas vitimas. Chamou-nos, enfim, quando se ouve tagarelar muito sobre unidade e talvez seja difícil conceber que possa tolerar-se maior desunião entre os próprios católicos, para não falar já dos homens em geral.

Eu nunca faço considerações políticas, porque esse não é o meu ofício. Para descrever sacerdotalmente a situação do mundo actual, é suficiente que pensemos de novo numa parábola do Senhor: a do trigo e do joio. O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo. Porém, enquanto os trabalhadores dormiam, veio o seu inimigo, e semeou joio no meio do trigo, e foi-se embora. Está claro: o campo é fértil e a semente é boa; o Senhor do campo lançou às mãos cheias a semente no momento propicio e com arte consumada; além disso, preparou toda uma vigilância para proteger a recente sementeira. Se depois apareceu o joio, é porque não houve correspondência, já que os homens - os cristãos especialmente - adormeceram e permitiram que o inimigo se aproximasse.

Quando os servidores irresponsáveis perguntam ao Senhor porque cresceu o joio no seu campo, a explicação salta aos olhos: inimicus homo hoc fecit, foi o inimigo! Nós, os cristãos, que devíamos estar vigilantes para que as coisas boas, postas pelo Criador no mundo, se desenvolvessem ao serviço da verdade e do bem, adormecemos - triste preguiça, esse sono! -, enquanto o inimigo e todos os que o servem se moviam sem descanso. Bem vedes como cresceu o joio: que sementeira tão abundante espalhada por todos os sítios!

Não tenho vocação de profeta de desgraças. Não desejo com as minhas palavras apresentar-vos um panorama desolador, sem esperança. Não pretendo queixar-me destes tempos em que vivemos pela providência do Senhor. Amamos esta nossa época, porque é o âmbito em que temos de alcançar a nossa santificação pessoal. Não admitimos nostalgias ingénuas e estéreis; o mundo nunca esteve melhor. Desde sempre, desde os princípios da Igreja, quando mal se acabava de ouvir a pregação dos primeiros doze, já surgiram violentas perseguições, começaram as heresias, propalou-se a mentira e desencadeou-se o ódio.

Mas não é lógico negar que o mal parece ter prosperado. Dentro de todo este campo de Deus, que é a Terra, herança de Cristo, irrompeu o joio: Não apenas joio, mas abundância de joio! Não podemos deixar enganar-nos pelo mito do progresso perene e irreversível. O progresso rectamente ordenado é bom e Deus quere-o. Contudo, tem-se mais em conta o outro falso progresso que cega os olhos a tanta gente, porque com frequência não percebe que a Humanidade, nalguns dos seus passos, volta atrás e perde o que tinha conquistado antes.

O Senhor - repito - deu-nos o mundo por herança. Temos de ter a alma e a inteligência despertas; temos de ser realistas, sem derrotismos. Só uma consciência cauterizada, só a insensibilidade produzida pela rotina, só o estouvamento frívolo podem permitir que se contemple o mundo sem ver o mal, a ofensa a Deus, o dano por vezes irreparável para as almas. É preciso sermos optimistas, mas com um optimismo que nasça da fé no poder de Deus - Deus não perde batalhas - com um optimismo que não proceda da satisfação humana, duma complacência néscia e presunçosa.

*Homilia pronunciada no dia 28 de Maio de 1964, Festa do Corpo de Deus

Hoje, festa do Corpo de Deus, meditamos juntos a profundidade do Amor do Senhor, que o levou a ficar oculto sob das espécies sacramentais, e é como se ouvíssemos, fisicamente, aqueles seus ensinamentos à multidão: Eis que o semeador saiu a semear. E, quando semeava, uma parte da semente caiu ao longo do caminho, e vieram as aves do céu e comeram-na. Outra parte caiu em lugar pedregoso, onde havia pouca terra; e logo nasceu porque estava à superfície; mas, saindo o sol, queimou-se e, porque não tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e sufocaram-na. Outra parte caiu em boa terra e frutificou; uns grãos renderam cem por um, outros sessenta, outros trinta.

A cena é actual. O semeador divino lança agora, também, a sua semente. A obra da salvação continua a cumprir-se e o Senhor quer servir-se de nós: deseja que nós, os cristãos, abramos ao seu amor todos os caminhos da Terra; convida-nos a propagar a mensagem divina, com a doutrina e com o exemplo, até aos últimos recantos do mundo. Pede-nos que, sendo cidadãos da sociedade eclesial e da civil, ao desempenhar com fidelidade os nossos deveres, sejamos cada um outro Cristo, santificando o trabalho profissional e as obrigações do próprio estado.

Se olharmos à nossa volta, para este mundo que amamos porque foi feito por Deus, dar-nos-emos conta de que se verifica a parábola: a palavra de Jesus Cristo é fecunda, suscita em muitas almas desejos de entrega e de fidelidade. A vida e o comportamento dos que servem a Deus mudaram a história, e inclusivamente muitos dos que não conhecem o Senhor regem-se - talvez sem sequer o advertirem - por ideais nascidos do Cristianismo.

Vemos também que parte da semente cai em terra estéril, ou entre espinhos e abrolhos: há corações que se fecham à luz da fé. Os ideais de paz, de reconciliação, de fraternidade, são aceites e proclamados, mas - não poucas vezes - são desmentidos com os factos. Alguns homens empenham-se inutilmente em afogar a voz de Deus, impedindo a sua difusão com a força bruta ou então com uma arma, menos ruidosa, mas talvez mais cruel, porque insensibiliza o espírito: a indiferença.

ão deixemos de reparar que fica ainda muito por fazer. Em determinada ocasião, talvez contemplando o suave movimento das espigas já gradas, disse Jesus aos seus discípulos: A messe é grande mas os operários são poucos. Rogai pois ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe. Como então, também agora faltam homens que queiram suportar o peso do dia e do calor . E se nós, os que trabalhamos, não formos fiéis, acontecerá o que escreveu o profeta Joel: destruída a colheita a terra ficou de luto: porque o trigo está seco, o vinho arruinado, o azeite perdido. Confundi-vos, lavradores; gritai, vinhateiros, pelo trigo e pela cevada. Não há colheita.

Não há colheita, quando não se está disposto a aceitar generosamente o trabalho constante, que pode tornar-se longo e fatigante: lavrar a terra, semear, cuidar do campo, fazer a ceifa e a debulha… Na história, no tempo, edifica-se o Reino de Deus. O Senhor confiou-nos a todos essa tarefa e ninguém se pode sentir dispensado dela. Ao adorarmos e contemplarmos hoje Cristo na Eucaristia, pensemos que ainda não chegou a hora do descanso, porque a jornada continua.

Está dito no livro dos Provérbios: quem lavrar a sua campina terá pão em abundância. Tiremos a lição espiritual destas palavras: quem não lavra o terreno de Deus, quem não é fiel à missão divina de se entregar aos outros, ajudando-os a conhecer Cristo, dificilmente conseguirá entender o que é o Pão eucarístico. Ninguém gosta daquilo que não lhe custou esforço. Para apreciar e amar a Sagrada Eucaristia, é preciso percorrer o caminho de Jesus; sermos trigo, morrermos para nós próprios, ressuscitarmos cheios de vida e darmos fruto abundante: cem por um!

Esse caminho resume-se numa única palavra: amar. Amar é ter o coração grande, sentir as preocupações dos que estão à nossa volta, saber perdoar e compreender: sacrificar-se, com Jesus Cristo, por todas as almas. Se amamos com o coração de Cristo, aprenderemos a servir, e defenderemos a verdade claramente e com amor. Para amar desta maneira, é preciso que cada um expulse da sua vida tudo o que estorva a Vida de Cristo em nós: o apego à nossa comodidade, a tentação do egoísmo, a tendência à exaltação pessoal. Só reproduzindo em nós a Vida de Cristo, poderemos transmiti-la aos outros; só experimentando a morte do grão de trigo, poderemos trabalhar nas entranhas da terra, transformá-la por dentro, torná-la fecunda.