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Há 5 pontos em «Entrevistas a S. Josemaria» cujo tema é Mundo → materialismo cristão .

Acabais de ouvir a leitura solene dos dois textos da Sagrada Escritura correspondentes à Missa do XXI Domingo depois de Pentecostes. Tendo ouvido a palavra de Deus, já estais situados no âmbito em que se hão-de mover as palavras que agora vos dirijo: palavras de sacerdote, pronunciadas perante uma grande família de filhos de Deus na sua Santa Igreja. Palavras, pois, que desejam ser sobrenaturais, pregoeiras da grandeza de Deus e das suas misericórdias para com os homens; palavras que vos disponham para a impressionante Eucaristia que hoje celebramos aqui no campus da Universidade de Navarra.

Considerai por uns instantes o facto que acabo de mencionar. Celebramos a Sagrada Eucaristia, o sacrifício sacramental do corpo e do sangue de Nosso Senhor, esse mistério de fé que reúne em si todos os mistérios do Cristianismo. Celebramos, portanto, a acção mais sagrada e transcendente que o homem, por graça de Deus, pode realizar nesta vida. Comungar o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor é, de certo modo, desligar-nos dos laços de terra e de tempo, para estar já com Deus no Céu, onde o próprio Cristo enxugará as lágrimas dos nossos olhos e onde não haverá morte, nem pranto, nem gritos de fadiga, porque o mundo velho já terá passado [Cfr Ap. XXI, 4].

Esta verdade tão consoladora e profunda, esta significação escatológica da Eucaristia, como costumam denominá-la os teólogos, poderia, no entanto, ser mal entendida; e de facto tem-no sido, sempre que se tem pretendido apresentar a existência cristã como algo de exclusivamente espiritual - espiritualista, quero dizer - próprio da gente pura, extraordinária, que não se mistura com as coisas desprezíveis deste mundo, ou que, quando muito, as tolera como realidade necessariamente justaposta ao espírito, enquanto aqui vivemos.

Quando se vêem as coisas deste modo, o lugar por excelência da vida cristã passa a ser o templo; e ser cristão, nesse caso, consiste em ir ao templo, participar em cerimónias sagradas, incrustar-se numa sociologia eclesiástica, numa espécie de mundo segregado, que se apresenta a si mesmo como a antecâmara do Céu, enquanto o mundo comum segue o seu próprio caminho. A doutrina do Cristianismo e a vida da graça passariam, por conseguinte, como que roçando o atribulado avançar da história humana, mas sem se encontrarem com ele.

Nesta manhã de Outubro, enquanto nos dispomos a penetrar no memorial da Páscoa do Senhor, respondemos simplesmente que não a essa visão deformada do Cristianismo. Reflecti um momento no enquadramento da nossa Eucaristia, da nossa Acção de Graças: encontramo-nos num templo singular; poderíamos dizer que a nave é o campus universitário; o retábulo, a Biblioteca da Universidade; além a maquinaria que levanta novos edifícios; e por cima, o céu de Navarra…

Esta enumeração não vos confirma, de uma forma palpável e inesquecível, que o verdadeiro lugar da vossa existência cristã é a vida corrente? Meus filhos, onde estiverem os homens, vossos irmãos; onde estiverem as vossas aspirações, o vosso trabalho, os vossos amores, é aí que está o sítio do vosso encontro quotidiano com Cristo. É no meio das coisas mais materiais da Terra que devemos santificar-nos, servindo Deus e todos os homens.

Tenho ensinado constantemente com palavras da Sagrada Escritura: o mundo não é mau porque saiu das mãos de Deus, porque é uma criatura Sua, porque Iavé olhou para ele e viu que era bom [Cfr. Gen. 1, 7 e ss.]. Nós, os homens, é que o tornamos mau e feio, com os nossos pecados e as nossas infidelidades. Não duvideis, meus filhos: qualquer forma de evasão das honestas realidades diárias é, para vós, homens e mulheres do mundo, coisa oposta à vontade de Deus.

Pelo contrário, deveis compreender agora - com uma nova clareza - que Deus vos chama a servi-Lo em e a partir das ocupações civis, materiais, seculares da vida humana: Deus espera-nos todos os dias no laboratório, no bloco operatório, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Ficai a saber: escondido nas situações mais comuns há um quê de santo, de divino, que toca a cada um de vós descobrir.

Eu costumava dizer àqueles universitários e àqueles operários que vinham ter comigo por volta de 1930 que tinham que saber materializar a vida espiritual. Queria afastá-los assim da tentação, tão frequente então como agora, de viver uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas.

Não, meus filhos! Não pode haver uma vida dupla; se queremos ser cristãos, não podemos ser esquizofrénicos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem de ser - na alma e no corpo - santa e cheia de Deus, deste Deus invisível que encontramos nas coisas mais visíveis e materiais.

Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar Nosso Senhor na nossa vida corrente ou nunca O encontraremos Por isso posso dizer-vos que a nossa época precisa de restituir à matéria e às situações que parecem mais vulgares o seu sentido nobre e original, colocá-las ao serviço do Reino de Deus, espiritualizá-las, fazendo delas o meio e a ocasião do nosso encontro permanente com Jesus Cristo.

O sentido cristão autêntico - que professa a ressurreição de toda a carne - sempre combateu, como é lógico, a desencarnação, sem receio de ser julgado materialista. É lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos fechados ao espírito.

Que são os sacramentos - vestígios da Encarnação do Verbo, como afirmaram os antigos - senão a mais clara manifestação deste caminho que Deus escolheu para nos santificar e levar para o Céu? Não vedes que cada sacramento é o amor de Deus, com toda a sua força criadora e redentora, que se nos dá servindo-se de meios materiais? O que é esta Eucaristia - já iminente - senão o Corpo e o Sangue adoráveis do nosso Redentor, que Se nos oferece através da humilda matéria deste mundo - vinho e pão - através dos elementos da natureza cultivados pelo homem, como o último Concílio Ecuménico quis recordar? [Cfr. Gaudium et Spes, nº 38]

Compreende-se, meus filhos, que o Apóstolo pudesse escrever: todas as coisas são vossas; vós sois de Cristo e Cristo de Deus [I Cor III 22-23]. Trata-se de um movimento ascendente que o Espírito Santo, difundido nos nossos corações, quer provocar no mundo: da terra até à glória de Nosso Senhor. E para que ficasse claro que nesse movimento se incluía até o que parece mais prosaico, S. Paulo escreveu também: quer comais, quer bebais, fazei tudo para glória de Deus [I Cor X, 31].

Esta doutrina da Sagrada Escritura, que se encontra, como sabeis, no próprio cerne do espírito do Opus Dei, há-de levar-vos a realizar o vosso trabalho com perfeição, a amar a Deus e os homens fazendo com amor as pequenas coisas da vossa jornada habitual, descobrindo esse quê divino que está encerrado nos pormenores. Que bem se enquadram aqui aqueles versos do poeta de Castela: Devagar, e boa letra;/que fazer as coisas bem/ importa mais que fazê-las [A. MACHADO, Poesias Completas. CLXI - Proverbios y cantares XXIV, Espasa-Calpe, Madrid, 1940].

Asseguro-vos, meus filhos, que, quando um cristão realiza com amor a mais intranscendente das acções diárias, ela transborda da transcendência de Deus. Por isso vos tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em fazer poesia heróica da prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não; onde se juntam deveras é nos vossos corações, quando viveis santamente a vida de cada dia…

Viver santamente a vida de cada dia, acabo de dizer-vos. E com estas palavras refiro-me a todo o programa da vossa vida cristã. Deixai-vos, pois, de sonhos, de falsos idealismos, de fantasias, daquilo a que costumo chamar mística do oxalá - oxalá não me tivesse casado; oxalá não tivesse esta profissão; oxalá tivesse mais saúde; oxalá fosse mais novo; oxalá fosse velho!… - e cingi-vos, pelo contrário, sobriamente, à realidade mais material e imediata, que é onde Nosso Senhor está: vede as minhas mãos e os meus pés, disse Jesus ressuscitado; sou Eu mesmo. Tocai-Me e vede que um espírito não tem carne e ossos como vedes que Eu tenho [Lc 24, 39].

São muitos os aspectos do ambiente secular em que vos moveis, que se iluminam a partir destas verdades. Pensai, por exemplo, na vossa actuação de cidadãos na vida civil. Um homem sabedor de que o mundo - e não só o templo - é o lugar do seu encontro com Cristo, ama esse mundo, procura adquirir uma boa preparação intelectual e profissional, vai formando - com plena liberdade - os seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que vive; e toma, como consequência, as suas próprias decisões que, por serem decisões de um cristão, procedem também de uma reflexão pessoal que tenta humildemente captar a vontade de Deus nesses aspectos, pequenos e grandes, da vida.

Continuo a manter a esperança - porque corresponde a um critério justo e à realidade vigente em tantos países - de que chegará o momento em que o Estado espanhol contribuirá, por seu lado, para aliviar os encargos de um empreendimento que não tem em vista nenhum proveito privado e que, pelo contrário, totalmente consagrado ao serviço da sociedade, procura trabalhar com eficácia para a prosperidade presente e futura da nação.

E agora, meus filhos e minhas filhas, permiti que me detenha noutro aspecto - particularmente querido - da vida comum. Refiro-me ao amor humano, ao amor casto entre um homem e uma mulher, ao noivado, ao matrimónio. Devo dizer uma vez mais que esse amor humano santo não é algo de permitido, de tolerado, à margem das verdadeiras actividades do espírito, como poderiam insinuar os falsos espiritualismos a que antes aludia. Há quarenta anos que venho pregando exactamente o contrário, através da palavra e da escrita, e os que não compreendiam já o vão entendendo.

O amor que conduz ao matrimónio e à família pode ser também um caminho divino, vocacional, maravilhoso, meio para uma completa dedicação ao nosso Deus. Realizai as coisas com perfeição, tenho-vos recordado, ponde amor nas pequenas actividades da jornada, descobri - insisto - esse quê divino que se oculta nos pormenores: toda esta doutrina encontra um lugar especial no espaço vital em que o amor humano se enquadra.

Já o sabeis muito bem, professores, alunos e todos os que dedicais o vosso trabalho à Universidade de Navarra: pus os vossos amores sob a protecção de Santa Maria, Mãe do Amor Formoso. E aí tendes a ermida que construímos com devoção no campus universitário, para recolher as vossas orações e a oblação desse amor maravilhoso e limpo que Ela abençoa.

Não sabíeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que recebestes de Deus, e que não vos pertenceis? [I Cor 6, 19]. Quantas vezes, diante da imagem da Virgem Santa, da Mãe do Amor Formoso, respondereis com uma alegre afirmação à pergunta do Apóstolo: sabemos, sim, e queremos vivê-lo com a tua ajuda poderosa, ó Virgem Mãe de Deus!

A oração contemplativa surgirá em vós sempre que meditardes nesta realidade impressionante: uma coisa tão material como o meu corpo foi escolhida pelo Espírito Santo para estabelecer a Sua morada…; já não me pertenço…; o meu corpo e a minha alma - o meu ser inteiro - são de Deus… E essa oração será rica em resultados práticos, derivados da grande consequência que o próprio Apóstolo apresenta: glorificai a Deus no vosso corpo [I Cor 6, 20].

Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura
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