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Há 4 pontos em «Amigos de Deus» cujo tema é Desprendimento → do próprio eu.

Mas, perguntar-me-ão, quando conseguimos o que amamos com toda a alma, já não continuamos a procurá-lo. Desapareceu a liberdade? Garanto-vos que então é mais activa do que nunca, porque o amor não se contenta com um cumprimento rotineiro, nem se coaduna com o fastio e a apatia. Amar significa recomeçar todos os dias a servir, com obras de carinho.

Insisto, e gostaria de gravá-lo a fogo em cada um: a liberdade e a entrega não se contradizem; apoiam-se mutuamente. A liberdade só se pode entregar por amor; não concebo outra espécie de desprendimento. Não é um jogo de palavras mais ou menos acertado. Na entrega voluntária, em cada instante dessa dedicação, a liberdade renova o amor e renovar-se é ser continuamente jovem, generoso, capaz de grandes ideais e de grandes sacrifícios. Lembro-me que tive uma grande alegria quando soube que em português chamam aos jovens os novos. E são isso. Conto-vos isto, porque já tenho muitos anos, mas quando rezo junto do altar ao Deus que enche de alegria a minha juventude,sinto-me muito jovem e sei que nunca me hei-de considerar velho, porque, se permanecer fiel ao meu Deus, o

Amor vivificar-me-á continuamente. A minha juventude renovar-se-á como a da águia.

Por amor à liberdade nos prendemos. Só a soberba sente nesses laços o peso de uma cadeia. A verdadeira humildade, que nos é ensinada por Aquele que é manso e humilde de coração, mostra-nos que o seu jugo é suave e a sua carga leve: o jugo é a liberdade; o jugo é o amor; o jugo é a unidade; o jugo é a vida que Ele ganhou para nós na Cruz.

Não sei se vos terão contado, na vossa infância, a fábula daquele camponês a quem ofereceram um faisão dourado. Após o primeiro momento de alegria e de surpresa por tal oferta, o novo dono começou a pensar onde poderia guardá-lo. Ao fim de várias horas, depois de muitas dúvidas e diversos planos, decidiu metê-lo no galinheiro. As galinhas, admiradas com a beleza do recém-chegado, giravam à sua volta com o assombro de quem descobre um semi-deus. No meio de tanto alvoroço, chegou a hora da comida e, mal o dono lançou os primeiros punhados de farelo, o faisão, esfomeado pela espera, lançou-se com avidez a tirar a barriga de misérias. Ante um espectáculo tão vulgar - aquele prodígio de formosura comia com o mesmo apetite que o animal mais corrente - as desencantadas companheiras de capoeira lançaram-se às bicadas contra o ídolo caído, até lhe arrancarem toda a plumagem. É assim triste a derrocada do ególatra; tanto mais desastrosa, quanto mais ele se elevou sobre as suas próprias forças, presunçosamente confiado na sua capacidade pessoal.

Tirai consequências práticas para a vossa vida diária, sentindo-vos depositários de alguns talentos - sobrenaturais e humanos - que deveis aproveitar rectamente. Afastai o ridículo engano de que algo vos pertence, como se fosse fruto só do vosso esforço. Lembrai-vos de que há uma parcela - Deus - de que ninguém pode prescindir.

Com esta perspectiva, convencei-vos de que, se desejamos deveras seguir o Senhor de perto e prestar um serviço autêntico a Deus e a toda a humanidade, temos de estar seriamente desprendidos de nós próprios: dos dons da inteligência, da saúde, da honra, das ambições nobres, dos triunfos, dos êxitos.

Refiro-me também - porque até aí deve chegar a tua decisão - a esses afãs limpos com que procuramos exclusivamente dar toda a glória a Deus e louvá-lo, ajustando a nossa vontade a esta norma clara e precisa: Senhor, quero isto ou aquilo só se te agrada a Ti, porque se não, a mim, que me interessa? Assestamos assim um golpe mortal no egoísmo e na vaidade que serpenteiam em todas as consciências. E conseguimos também a verdadeira paz para as nossas almas com um desprendimento que nos leva a possuir Deus, de forma cada vez mais íntima e mais intensa.

Para imitar Jesus, o coração tem de estar inteiramente livre de apegos. Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de mim, encontrá-la-á. Pois, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perde a sua alma? E comenta S. Gregório: não nos bastaria viver desprendidos das coisas, se não renunciássemos também a nós próprios. Mas… aonde iremos fora de nós? Quem é o que renuncia, se a si mesmo se deixa?

Sabei que é diferente a nossa situação enquanto caídos pelo pecado e enquanto formados por Deus. Fomos criados de uma forma e encontramo-nos noutra diferente por causa de nós mesmos. Renunciemos a nós próprios, naquilo em que nos convertemos pelo pecado e mantenhamo-nos como fomos constituídos pela graça. Assim, se o que foi soberbo, convertendo-se a Cristo, se torna humilde, já renunciou a si mesmo; se um luxurioso se converte a uma vida continente, também renunciou a si próprio naquilo que era antes; se um avarento deixa de o ser e, em vez de se apoderar do alheio, começa a ser generoso com o que lhe pertence, certamente se negou a si próprio.

Deus ama o que dá com alegria

Dentro deste quadro de desprendimento total que o Senhor nos pede, assinalar-vos-ei outro ponto de particular importância: a saúde. Agora, a maioria de vós sois jovens; atravessais essa etapa formidável de plenitude de vida, que transborda de energias. Mas o tempo passa e começa a notar-se inexoravelmente o desgaste físico; vêm depois as limitações da idade madura e, por último, os achaques da velhice. Aliás, qualquer de nós, em qualquer momento pode adoecer ou sofrer algum transtorno corporal.

Só se aproveitarmos com rectidão - cristãmente - as épocas de bem-estar físico, os bons tempos, aceitaremos também com alegria sobrenatural os acontecimentos que habitualmente são considerados maus. Sem descer a demasiados pormenores, quero transmitir-vos a minha experiência pessoal. Quando estamos doentes, podemos ser impertinentes: não me atendem bem, ninguém se preocupa comigo, não me tratam como mereço, ninguém me compreende… O demónio, que anda sempre à espreita, ataca por qualquer flanco. E, na doença, a sua táctica consiste em fomentar uma espécie de psicose que nos afaste de Deus, que azede o ambiente ou que destrua esse tesouro de méritos, que, para bem de todas as almas, se alcança quando aceitamos a dor com optimismo sobrenatural - com amor. Portanto, se é da vontade de Deus que nos atinja o aguilhão do sofrimento, aceitemo-lo como sinal de que nos considera maduros para nos associar mais estreitamente à sua cruz redentora.

Torna-se, pois, necessária, uma preparação remota, feita todos os dias com santo desapego de nós próprios, para nos dispormos a aceitar com garbo a doença ou a desventura - se o Senhor tal permitir. Servi-vos das ocasiões normais, de alguma privação, da dor nas suas pequenas manifestações habituais, da mortificação, para exercitardes as virtudes cristãs.

Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura