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Há 3 pontos em «Cristo que Passa» cujo tema é Perseverança → lealdade.

Correspondência humana

É neste clima da misericórdia de Deus que se desenvolve a existência do cristão. Este é o âmbito do seu esforço por se comportar como filho do Pai. E quais são os principais meios para conseguirmos que a vocação se mantenha firme? Vou dizer-te hoje dois, que são dois eixos vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.

Vida interior, em primeiro lugar. Há ainda tão pouca gente que entenda isto! Ao ouvir falar de vida interior, pensa-se logo na obscuridade do templo, quando não no ambiente abafado de algumas sacristias. Estou há mais de um quarto de século a dizer que não se trata disso. Eu falo da vida interior de cristãos normais e correntes, que habitualmente se encontram em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no trabalho, na família e nos momentos de diversão estão unidos a Jesus todo o dia. E o que é isto senão vida de oração contínua? Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, numa intimidade com Deus que te leva a endeusar-te? Esta é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as almas de oração. Torna-se Deus aquele homem, escreve Clemente de Alexandria, porque quer o mesmo que Deus quer.

A princípio custará. É preciso esforçarmo-nos por nos dirigir ao Senhor, por lhe agradecermos a sua piedade paternal e concreta para connosco. A pouco e pouco o amor de Deus torna-se palpável - embora isto não seja coisa de sentimentos - como uma estocada na alma. É Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que estou à porta e chamo. Como anda a tua vida de oração? Não sentes às vezes, durante o dia, desejos de falar mais devagar com Ele? Não Lhe dizes: logo vou contar-te isto e aquilo; logo vou conversar sobre isso contigo?

Nos momentos dedicados expressamente a esse colóquio com o Senhor o coração expande-se, a vontade fortalece-se, a inteligência - ajudada pela graça - enche a realidade humana com a realidade sobrenatural. E, como fruto, sairão sempre propósitos claros, práticos, de melhorares a tua conduta, de tratares delicadamente, com caridade, todos os homens, de te empenhares a fundo - com o empenho dos bons desportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.

A oração torna-se contínua como o bater do coração, como as pulsações. Sem essa presença de Deus não há vida contemplativa. E sem vida contemplativa de pouco vale trabalhar por Cristo, porque em vão se esforçam os que constroem se Deus não sustenta a casa.

A arriscada segurança do Cristão

Qui habitat in adiutorio Altissimi in protectione Dei coelí commorabitur - Habitar sob a protecção de Deus, viver com Deus: eis a arriscada segurança do cristão. É necessário convencermo-nos de que Deus nos ouve, de que está sempre solícito por nós, e assim se encherá de paz o nosso coração. Mas viver com Deus é indubitavelmente correr um risco, porque o Senhor não Se contenta compartilhando; quer tudo. E aproximar-se d'Ele um pouco mais significa estar disposto a uma nova rectificação, a escutar mais atentamente as suas inspirações, os santos desejos que faz brotar na nossa alma, e a pô-los em prática.

Desde a nossa primeira decisão consciente de viver integralmente a doutrina de Cristo, é certo que avançámos muito pelo caminho da fidelidade à sua Palavra. Mas não é verdade que restam ainda tantas coisas por fazer? Não é verdade que resta, sobretudo, tanta soberba? É precisa, sem dúvida, uma outra mudança, uma lealdade maior, uma humildade mais profunda, de modo, que, diminuindo o nosso egoísmo, cresça em nós Cristo, pois illum oportet crescere, me autem minui, é preciso que Ele cresça e que eu diminua.

Não é possível deixar-se ficar imóvel. É necessário avançar para a meta que S. Paulo apontava: não sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim. A ambição é alta e nobilíssima: a identificação com Cristo, a santidade. Mas não há outro caminho, se se deseja ser coerente com a vida divina que, pelo Baptismo, Deus fez nascer nas nossas almas. O avanço é o progresso na santidade; o retrocesso é negar-se ao desenvolvimento normal da vida cristã. Porque o fogo do amor de Deus precisa de ser alimentado, de aumentar todos os dias arreigando-se na alma; e o fogo mantém-se vivo queimando novas coisas. Por isso, se não aumenta, está a caminho de se extinguir.

Recordai as palavras de Santo Agostinho: Se disseres basta, estás perdido. Procura sempre mais, caminha sempre, progride sempre. Não permaneças no mesmo sítio, não retrocedas, não te desvies.

A Quaresma coloca-nos agora perante estas perguntas fundamentais: Avanço na minha fidelidade a Cristo? Em desejos de santidade? Em generosidade apostólica na minha vida diária, no meu trabalho quotidiano entre os meus companheiros de profissão?

Cada um que responda a estas. perguntas, sem ruído de palavras, e verá como é necessária uma nova transformação para que Cristo viva em nós, para que a sua imagem se reflicta limpidamente na nossa conduta.

Se alguém quer vir atrás de Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz de cada dia, e siga-Me. Cristo repete-o a cada um de nós, ao ouvido, intimamente: a Cruz de cada dia. Não só - escreve S. Jerónimo - em tempo de perseguição, ou quando se apresenta a possibilidade do martírio, mas em todas as situações, em todas as actividades, em todos os pensamentos, em todas as palavras, neguemos aquilo que antes éramos e confessemos o que agora somos, visto que renascemos em Cristo.

Estas considerações não são, afinal, senão o eco das do Apóstolo: Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste na bondade, na justiça e na verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor.

A conversão é coisa de um instante; a santificação é tarefa para toda a vida. A semente divina da caridade, que Deus pôs nas nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é agradável ao Senhor. Por isso, é indispensável estarmos dispostos a recomeçar, a reencontrar - nas novas situações da nossa vida - a luz, o impulso da primeira conversão. E essa é a razão pela qual havemos de nos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor para podermos conhecê-Lo melhor e conhecer-nos melhor a nós mesmos. Não há outro caminho para nos convertermos de novo.

Tenhamos, pois, Fé, sem permitir que o desalento nos domine; sem nos determos em cálculos meramente humanos. Para superar os obstáculos, há que começar a trabalhar, metendo-se em cheio nessa tarefa, de maneira que o nosso próprio esforço nos leve a abrir novos caminhos. Perante qualquer dificuldade, o remédio é este: santidade pessoal, entrega ao Senhor.

Ser santos é viver tal como o nosso Pai do Céu dispôs que vivêssemos. Dir-me-eis que é difícil. Sim, o ideal é muito elevado. Mas ao mesmo tempo é fácil: está ao alcance da mão. Quando uma pessoa adoece, nem sempre se consegue encontrar o remédio adequado para a tratar. Mas no plano sobrenatural não acontece assim. O remédio está sempre perto de nós: é Jesus Cristo, presente na Sagrada Eucaristia, que também nos dá a sua graça nos outros Sacramentos que instituiu.

Repitamos com a palavra e com as obras: Senhor, confio em Ti, basta-me a tua providência ordinária, a tua ajuda de cada dia. Não temos por que pedir a Deus grandes milagres. Temos de lhe suplicar, pelo contrário, que aumente a nossa fé, que ilumine a nossa inteligência, que fortaleça a nossa vontade. Jesus está sempre junto de nós e permanece fiel.

Desde o começo da minha pregação, preveni-vos contra um falso endeusamento. Não te assustes ao veres-te tal como és: assim, feito de barro. Não te preocupes. Porque, tu e eu somos filhos de Deus, - este é o endeusamento bom - escolhidos desde a eternidade, com uma vocação divina: escolheu-nos o Pai, por Jesus Cristo, antes da criação do mando, para que sejamos santos diante dele. Nós, que somos especialmente de Deus, seus instrumentos apesar da nossa pobre miséria pessoal, seremos eficazes se não perdermos o conhecimento da nossa fraqueza. As tentações dão-nos a dimensão da nosso própria fraqueza.

Se sentimos desalento ao experimentar - talvez de um modo particularmente vivo - a nossa mesquinhez, é o momento de nos abandonarmos por completo, com docilidade, nas mãos de Deus. Conta-se que, certo dia, um mendigo saiu ao encontro de Alexandre Magno, pedindo uma esmola. Alexandre parou e ordenou que o fizessem senhor de cinco cidades. O pobre, confundido e atordoado, exclamou: eu não pedia tanto! E Alexandre respondeu: tu pediste como quem és; eu dou-te como quem sou.

Mesmo nos momentos em que percebemos mais profundamente a nossa limitação, podemos e devemos olhar para Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, sabendo-nos participantes da vida divina. Nunca existe razão suficiente para voltarmos atrás: o Senhor está ao nosso lado. Temos que ser fiéis, leais, encarar as nossas obrigações, encontrando em Jesus o amor e o estímulo para compreender os erros dos outros e superar os nossos próprios erros. Assim, todos esses desalentos - os teus, os meus, os de todos os homens - servem também de suporte ao reino de Cristo.

Reconheçamos as nossas fraquezas, mas confessemos o poder de Deus. O optimismo, a alegria, a convicção firme de que o Senhor quer servir-se de nós têm de informar a vida cristã. Se nos sentirmos parte dessa Igreja Santa, se nos considerarmos sustentados pela rocha firme de Pedro e pela acção do Espírito Santo, decidir-nos-emos a cumprir o pequeno dever de cada instante: semear todos os dias um pouco. E a colheita fará transbordar os celeiros.