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Há 3 pontos em «Entrevistas a S. Josemaria» cujo tema é Liberdade → e obediência.

O Concílio Vaticano II utilizou abundantemente nos seus Documentos a expressão “Povo de Deus”, para designar a Igreja, e pôs assim a claro a responsabilidade comum de todos os cristãos na missão única deste Povo de Deus. Quais as características que, em seu entender, a “necessária opinião pública na Igreja” - da qual já Pio XII falou - deve ter, para reflectir essa responsabilidade comum? Como é afectado o fenómeno da “opinião pública na Igreja” pelas peculiares relações de autoridade e obediência que se verificam no seio da comunidade eclesial?

Não concebo que possa haver obediência verdadeiramente cristã, se essa obediência não for voluntária e responsável. Os filhos de Deus não são pedras ou cadáveres: são seres inteligentes e livres e elevados todos à mesma ordem sobrenatural, tal como a pessoa que manda. Mas não poderá nunca fazer uso recto da inteligência e da liberdade - para obedecer, da mesma maneira que para opinar - quem carecer de suficiente formação cristã. Por isso, o problema de fundo da “necessária opinião pública na igreja” é equivalente ao problema da necessária formação doutrinal dos fiéis. É certo que o Espírito Santo distribui a abundância dos seus dons entre os membros do Povo de Deus - que são todos corresponsáveis da missão da Igreja - mas isto não exime ninguém, antes pelo contrário, do dever de adquirir essa adequada formação doutrinal.

Entendo por doutrina o suficiente conhecimento que cada fiel deve ter da missão total da Igreja e da peculiar participação, e consequente responsabilidade específica, que lhe corresponde nessa missão única. Este é - como o tem recordado repetidas vezes o Santo Padre - o colossal trabalho de pedagogia que a Igreja tem de enfrentar nesta época pós-conciliar. Penso que a solução correcta do problema a que aludiu deve ser procurada - como outras esperanças latentes no seio da Igreja - em relação directa com esse trabalho. Não serão, com certeza, as intuições mais ou menos proféticas de alguns carismáticos sem doutrina que poderão assegurar a necessária opinião pública no Povo de Deus.

Quanto às formas de expressão dessa opinião pública, não considero que seja um problema de órgãos ou de instituições. Tão adequado pode ser um Conselho pastoral diocesano, como as colunas dum jornal - ainda que não seja oficialmente católico - ou a simples carta pessoal dum fiel ao seu Bispo, etc. As possibilidades e as modalidades legítimas pelas quais essa opinião dos fiéis se pode manifestar são muito variadas, e não parece que se possam nem devam espartilhar, criando uma nova entidade ou instituição. E menos ainda se se tratasse duma instituição que corresse o perigo - tão fácil - de chegar a ser monopolizada ou instrumentalizada por um grupo ou grupito de católicos oficiais, qualquer que fosse a tendência ou orientação em que essa minoria se inspirasse. Isto poria em perigo o próprio prestígio da Hierarquia e soaria a falso para os restantes membros do Povo de Deus.

O n. 5 do Decreto Apostolicam actuositatem afirmou claramente que a animação cristã da ordem temporal é missão de toda a Igreja. Compete, pois, a todos: à Hierarquia, ao clero, aos religiosos e aos leigos. Poderia dizer-nos como vê o papel e as características de cada um desses sectores eclesiais nessa missão única e comum?

Na realidade, a resposta encontra-se nos próprios textos conciliares. À Hierarquia compete indicar - como parte do seu magistério - os princípios doutrinais que hão-de presidir e iluminar a realização dessa tarefa apostólica (cf. Const. Lumen gentíum, n.º 28; Const. Gaudium et spes, n.º 43; Decr. Apostolicam actuositatem, n.º 24).

Aos leigos, que trabalham imersos em todas as circunstâncias e estruturas próprias da vida secular, corresponde de forma específica a tarefa, imediata e directa, de ordenar essas realidades temporais à luz dos princípios doutrinais enunciados pelo Magistério; mas actuando, ao mesmo tempo, com a necessária autonomia pessoal perante as decisões concretas que tenham de tomar na sua vida social, familiar, política, cultural, etc. (cfr. Const. Lumen gentium, n.º 31; Const. Gaudium et spes, n.º 43; Decr. Apostolicam actuositatem, n.º 7).

Quanto aos religiosos, que se apartam dessas realidades e actividades seculares abraçando um estado de vida peculiar, a sua missão é dar um testemunho escatológico público que ajude a recordar aos restantes fiéis do Povo de Deus que não têm nesta terra morada permanente (cfr. Const. Lumen gentium, n.º 44; Decr. Perfectae caritatis, n.º 5). E não pode esquecer-se ainda que também servem a animação cristã da ordem temporal, as numerosas obras de beneficência, de caridade e assistência social que tantos religiosos e religiosas realizam com abnegado espírito de sacrifício.

Isto traz consigo uma visão mais profunda da Igreja, como comunidade formada por todos os fiéis, de modo que todos somos solidários duma mesma missão, que cada um deve realizar segundo as suas circunstâncias pessoais. Os leigos, graças aos impulsos do Espírito Santo, são cada vez mais conscientes de serem Igreja, de possuírem uma missão específica, sublime e necessária, uma vez que foi querida por Deus. E sabem que essa missão depende da sua própria condição de cristãos, não necessariamente de um mandato da Hierarquia, embora seja evidente que deverão realizá-la em união com a Hierarquia eclesiástica e segundo os ensinamentos do Magistério: sem união com o Corpo episcopal e com a sua cabeça, o Romano Pontífice, não pode haver, para um católico, união com Cristo.

O modo de os leigos contribuírem para a santidade e para o apostolado da Igreja consiste na acção livre e responsável no seio das estruturas temporais, aí levando o fermento da mensagem cristã. O testemunho de vida cristã, a palavra que ilumina em nome de Deus e a acção responsável, para servir os outros, contribuindo para a resolução de problemas comuns, são outras tantas manifestações dessa presença através da qual o cristão corrente cumpre a sua missão divina.

Há muitos anos, desde a própria data da fundação do Opus Dei, que medito e tenho feito meditar umas palavras de Cristo que nos relata S. João: et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Jn. 12, 32). Cristo, morrendo na Cruz, atrai a Si a criação inteira, e, em seu nome, os cristãos, trabalhando no meio do mundo, hão-de reconciliar todas as coisas com Deus, colocando Cristo no cume de todas as actividades humanas.

Gostaria de acrescentar que, juntamente com esta consciencialização dos leigos, se está a produzir um desenvolvimento análogo da sensibilidade dos pastores: eles reparam no que tem de específico a vocação laical, que deve ser promovida e favorecida mediante uma pastoral que leve a descobrir no meio do Povo de Deus o carisma da santidade e do apostolado, nas infinitas e diversíssimas formas nas quais Deus o concede.

Esta nova pastoral é muito exigente mas, em minha opinião, absolutamente necessária. Requer o dom sobrenatural do discernimento de espíritos, a sensibilidade para as coisas de Deus, a humildade de não impor as próprias preferências e de servir o que Deus promove nas almas. Numa palavra: o amor à legítima liberdade dos filhos de Deus, que encontram Cristo e são feitos portadores de Cristo, percorrendo caminhos muito diversos entre si, mas todos igualmente divinos.

Um dos maiores perigos que hoje ameaçam a Igreja poderia ser precisamente o de não reconhecer essas exigências divinas da liberdade cristã e, deixando-se levar por falsas razões de eficácia, pretender impor uma uniformidade aos cristãos. Na raiz dessa atitude há algo não apenas legítimo, como, até, louvável: o desejo de que a Igreja dê um testemunho tal, que comova o mundo moderno. Todavia, receio bem que o caminho seja errado e leve, por um lado, a comprometer a Hierarquia em questões temporais, caindo num clericalismo diferente mas tão nefasto como o dos séculos passados; e, por outro, a isolar os leigos, os cristãos correntes, do mundo em que vivem, para os converter em porta-vozes de decisões ou ideias concebidas fora desse mundo.

Parece-me que a nós, sacerdotes, se nos pede a humildade de aprender a não estar na moda, de sermos realmente servos dos servos de Deus - lembrando-nos daquela exclamação do Baptista: illum oportet crescere, me autem mínui (Jn. 3, 30), convém que Cristo cresça e que eu diminua - para que os cristãos correntes, os leigos, tornem Cristo presente em todos os ambientes da sociedade. A missão de dar doutrina, de ajudar a penetrar nas exigências pessoais e sociais do Evangelho, de levar a discernir os sinais dos tempos é e será sempre uma das funções fundamentais do sacerdote. Mas todo o trabalho sacerdotal deve ser realizado dentro do maior respeito pela legítima liberdade das consciências: cada homem deve responder livremente a Deus. Quanto ao resto, todos os católicos, além dessa ajuda do sacerdote, têm também luzes próprias que recebem de Deus, graça de estado para levar a cabo a missão específica que, como homens e como cristãos, receberam.

Quem pensa que, para que a voz de Cristo se faça ouvir no mundo de hoje, é necessário que o clero fale ou se faça sempre presente, ainda não compreendeu bem a dignidade da vocação divina de todos e de cada um dos fiéis cristãos.