Na Epifania do Senhor

*Homilia pronunciada em 6 de Janeiro de 1956, Epifania do Senhor.

Ainda não há muito tempo, tive oportunidade de admirar um baixo-relevo em mármore, que representa a cena da adoração de Deus Menino pelos Reis Magos. Emoldurando esse baixo-relevo, havia outros: quatro anjos, cada um com seu símbolo - um diadema, o mundo coroado pela cruz, uma espada e um ceptro. Deste modo, utilizando símbolos bem conhecidos, ilustrava-se plasticamente o acontecimento que hoje comemoramos: uns homens sábios - reis, segundo a tradição - prostram-se diante do Menino, depois de perguntar em Jerusalém: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?

Também eu, instado por esta pergunta, contemplo agora Jesus, deitado numa manjedoura, num lugar que só é próprio para os animais. Onde está, Senhor, a tua realeza: o diadema, a espada, o ceptro? Pertencem-lhe e não os quer; reina envolto em panos. É um rei inerme, que se nos apresenta indefeso; é uma criança. Como não havemos de recordar aquelas palavras do Apóstolo: aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo.

Nosso Senhor encarnou para nos manifestar a vontade do Pai. E começa a instruir-nos estando ainda no berço. Jesus Cristo procura-nos - com uma vocação, que é vocação para a santidade -, a fim de consumarmos com Ele a Redenção. Considerai o seu primeiro ensinamento: temos de co-redimir à custa de triunfar, não sobre o próximo, mas sobre nós mesmos. Tal como Cristo, precisamos de nos aniquilar, de sentir-nos servidores dos outros para os conduzir a Deus.

Onde está o nosso Rei? Não será que Jesus quer reinar, antes de mais, no coração, no teu coração? Por isso se fez menino: quem é capaz de ter o coração fechado para uma criança? Onde está o nosso Rei? Onde está o Cristo que o Espírito Santo procura formar na nossa alma? Cristo não pode estar na soberba, que nos separa de Deus, nem na falta de caridade, que nos isola dos homens. Aí não podemos encontrar Cristo, mas apenas a solidão.

No dia da Epifania, prostrados aos pés de Jesus Menino, diante de um Rei que não ostenta sinais externos de realeza, podeis dizer-lhe: Senhor, expulsa a soberba da minha vida, subjuga o meu amor próprio, esta minha vontade de afirmação pessoal e de imposição da minha vontade aos outros. Faz com que o fundamento da minha personalidade seja a identificação contigo.

O caminho da fé

Não é fácil esta meta da identificação com Cristo. Mas também não é difícil, se vivemos de acordo com os ensinamentos do Senhor, isto é, se recorrermos diariamente à sua Palavra, se impregnarmos a nossa vida da realidade sacramental - a Eucaristia - que Ele nos deixou como alimento, porque o caminho do cristão é andadeiro, como diz uma antiga canção da minha terra. Tal como os Reis Magos, descobrimos uma estrela que é luz, rumo certo no céu da nossa alma.

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Também nós vivemos esta experiência. Também nós sentimos que, pouco a pouco, se acendia na nossa alma uma luz nova: o desejo de ser cristãos em plenitude, o desejo, por assim dizer, de tomar Deus a sério. Se cada um de nós começasse agora a contar em voz alta o processo interior da sua vocação sobrenatural, não poderíamos deixar de pensar que tudo isso foi divino. Agradeçamos, pois, a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo e a Santa Maria - por cuja intercessão chegam até nós todas as bênçãos do Céu - este dom, que, a par da fé, é o maior que o Senhor pode conceder a uma criatura: a firme determinação de alcançar a plenitude da caridade, com a convicção de que também é necessária, e não apenas possível, a santidade no meio dos afazeres profissionais, sociais…

Considerai a delicadeza com que o Senhor nos dirige este convite. Exprime-se com palavras humanas, como um apaixonado: Eu chamei-te pelo teu nome…Tu és meu. Deus - que é a Beleza, a Sabedoria, a Grandeza - anuncia-nos que somos seus, que fomos escolhidos como objecto do seu amor infinito. É precisa uma vida forte de fé para não desvirtuar esta maravilha que a Providência depõe nas nossas mãos, uma fé como a dos Reis Magos, que nos leva a ter a certeza de que nem o deserto, nem a tormenta, nem a tranquilidade do oásis nos impedirão de chegar à meta do presépio eterno: a vida definitiva com Deus.

Caminho de fé é caminho de sacrifício. A vocação cristã não nos tira do nosso lugar, mas exige que abandonemos tudo o que estorva a vontade de Deus. A luz que se acende na nossa alma é apenas o começo; temos de segui-la, se queremos que se torne estrela e depois sol. Enquanto os Magos estavam na Pérsia - escreve S. João Crisóstomo - não viam senão uma estrela, mas quando abandonaram a pátria viram o próprio sol da justiça. Pode dizer-se que não teriam continuado a ver a estrela se tivessem permanecido no seu país. Apressemo-nos, pois, nós também; e embora todos no-lo impeçam, corramos para casa desse Menino.

Firmeza na vocação

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Ao ouvir isto, o Rei Herodes ficou perturbado, e com ele toda a cidade de Jerusalém. Esta cena continua a repetir-se nos nossos dias. Perante a grandeza de Deus, perante a decisão - seriamente humana e profundamente cristã - de viver de modo coerente com a fé, há quem fique desconcertado, e mesmo quem se escandalize, sem nada entender. Dir-se-ia que não admitem a existência de outra realidade para além dos seus acanhados horizontes terrenos. Em face das manifestações de generosidade que observam no comportamento dos que ouviram o chamamento do Senhor, sorriem com displicência, assustam-se, ou então - em casos que parecem verdadeiramente patológicos - obstinam-se em pôr obstáculos à santa determinação tomada por uma consciência com plena liberdade.

Já várias vezes tive oportunidade de assistir a essa espécie de mobilização geral contra quem se decide a dedicar toda a sua vida ao serviço de Deus e do próximo. Há pessoas que estão convencidas que o Senhor não pode escolher quem quer que seja sem lhes pedir primeiro autorização a eles; e de que o homem não tem inteira liberdade para aceitar ou recusar o Amor. Para quem pensa desse modo, a vida sobrenatural de cada alma é algo de secundário; julgam que se lhe deve prestar atenção, mas só depois de satisfeitos os pequenos comodismos e os egoísmos humanos. Se fosse assim, que seria do cristianismo? As palavras de Jesus, cheias de amor e ao mesmo tempo de exigência, são só para ouvir, ou para ouvir e pôr em prática? Ora Ele disse: sede perfeita, como o vosso Pai celestial é perfeita.

Nosso Senhor dirige-se a todos os homens, para que venham ao seu encontro, para que sejam santos. Não chama só os Reis Magos, que eram sábios e poderosos; antes disso tinha enviado aos pastores de Belém, não simplesmente uma estrela, mas um dos seus anjos. Mas tanto uns como outros - os pobres e os ricos, os sábios e os menos sábios - têm de fomentar na sua alma a disposição de humildade que permite ouvir a voz de Deus.

Considerai o caso de Herodes. É um poderoso da terra e tem oportunidade de recorrer à colaboração dos sábios: convocando todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Messias.O poder e a ciência não o levam ao conhecimento de Deus. Para o seu coração empedernido, o poder e a ciência são instrumentos da maldade: o desejo inútil de aniquilar Deus, o desprezo pela vida de um punhado de crianças inocentes.

Prossigamos na leitura do Santo Evangelho. Eles responderam: - em Belém de Judá, porque assim está escrito pelo Profeta: E tu, Belém, terra de Judá, não és por certo a mínima entre as principais cidades de Judá, pois de ti sairá um chefe que há-de comandar Israel, meu povo.Não nos podem passar despercebidas estas manifestações da misericórdia divina: quem veio redimir o mundo nasce numa aldeia ignorada. Na verdade, Deus não faz acepção de pessoas, como nos repete a Escritura com insistência. Ao convidar uma alma para uma vida de plena coerência com a fé, não toma em conta a fortuna, a nobreza de família, os altos graus de ciência. A vocação precede todos os possíveis méritos: a estrela que tinham visto no Oriente, ia adiante deles até que, ao chegar sobre o lugar onde estava o Menino, parou.

A vocação está antes de tudo; Deus ama-nos antes de que saibamos sequer dirigir-nos a Ele e infunde em nós o amor com que podemos corresponder-lhe. A bondade paternal de Deus vem ao nosso encontro. Nosso Senhor não se limita a ser justo; vai muito mais além: é misericordioso. Não espera que nos dirijamos a Ele; antecipa-se, manifestando por nós, de modo inequívoco, amor de pai.

Bom pastor, bom guia

Se a vocação é o mais importante, se a luz da estrela vai à nossa frente, para nos orientar no nosso caminho de amor de Deus, não é lógico ter dúvidas quando, uma vez ou outra, a perdemos de vista. Quase sempre por nossa culpa, em certos momentos da nossa vida interior, acontece-nos o que aconteceu na viagem dos Reis Magos: a estrela oculta-se. Já conhecemos o esplendor divino da nossa vocação, estamos convencidos do seu carácter definitivo, mas talvez o pó que levantamos ao caminhar - o pó das nossas misérias - forme uma nuvem densa, que não deixa passar a luz.

Que havemos de fazer então? Seguir o exemplo daqueles homens santos: perguntar. Herodes serviu-se da ciência para proceder de modo injusto; os Reis Magos utilizam-na para fazer o bem. Mas nós, cristãos, não temos necessidade de perguntar a Herodes ou aos sábios da Terra. Cristo deu à sua Igreja a segurança da doutrina, a corrente da graça dos Sacramentos; e providenciou para que haja pessoas que nos orientem, que nos conduzam, que nos recordem constantemente o caminho. Dispomos de um tesouro infinito de ciência: a Palavra de Deus, guardada pela Igreja; a graça de Cristo que se administra nos Sacramentos; o testemunho e o exemplo dos que vivem com rectidão a nosso lado e sabem fazer das suas vidas um caminho de fidelidade a Deus.

Permiti que vos dê um conselho: se alguma vez perderdes a claridade da luz, recorrei sempre ao bom pastor. E quem é o bom pastor? O que entra pela porta da fidelidade à doutrina da Igreja; o que não se comporta como um mercenário, que, ao ver vir o lobo, deixa as ovelhas e foge; e o lobo arrebata-as e faz dispersar o rebanho. Reparai que a palavra divina não é vã: a insistência de Cristo (vedes como fala, com tanto carinho, de ovelhas e de pastores, de redil e de rebanhos?) é uma demonstração prática da necessidade de um bom guia para a nossa alma.

Se não houvesse maus pastores - escreve S. Agostinho - Ele não teria feito referência especial aos bons. Quem é mercenário? É o que vê o lobo e foge. O que procura a sua própria glória, não a glória de Cristo; o que não se atreve a reprovar os pecadores com liberdade e espírito. O lobo fila uma ovelha pelo pescoço; o diabo induz um fiel, por exemplo, a cometer adultério. Se te calas e não reprovas esse comportamento, és mercenário: viste o lobo e fugiste. Talvez me contradigas: não, estou aqui; não fugi. E eu respondo-te: fugiste porque te calaste; e calaste-te porque tiveste medo.

A santidade da esposa de Cristo sempre se provou - e continua a provar-se actualmente - pela abundância de bons pastores. Mas a fé cristã, que nos ensina a ser simples, não nos leva a ser ingénuos. Há mercenários que se calam e há mercenários que pregam uma doutrina que não é de Cristo. Por isso, se porventura o Senhor permite que fiquemos às escuras, inclusivamente em coisas de pormenor, se sentimos falta de firmeza na fé, recorramos ao bom pastor, àquele que - dando a vida pelos outros - quer ser, na palavra e na conduta, uma alma movida pelo amor - àquele que talvez seja também um pecador, mas que confia sempre no perdão e na misericórdia de Cristo.

Se a vossa consciência vos reprova por alguma falta - embora não vos pareça uma falta grave - se tendes uma dúvida a esse respeito, recorrei ao sacramento da Penitência. Ide ao sacerdote que vos atende, ao que sabe exigir de vós firmeza na fé, delicadeza de alma, verdadeira fortaleza cristã. Na Igreja existe a mais completa liberdade para nos confessarmos com qualquer sacerdote que possua as necessárias licenças eclesiásticas; mas um cristão de vida limpa recorrerá - com liberdade! - àquele que reconhece como bom pastor, que o pode ajudar a erguer a vista para voltar a ver no céu a estrela do Senhor.

Ouro, incenso e mirra

Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde” - diz o texto latino com admirável reiteração: ao descobrir novamente a estrela, exultaram com grande alegria. E porquê tanta alegria? Porque eles, que nunca duvidaram, recebem do Senhor a prova de que a estrela não tinha desaparecido; deixaram de a ver sensivelmente mas tinham-na conservado sempre na alma. Assim é a vocação cristã: se não se perde a fé, se se mantém a esperança em Jesus Cristo que estará connosco até à consumação dos séculos, a estrela reaparece. E, ao verificar uma vez mais a realidade da vocação, nasce em nós uma alegria maior, que aumenta a nossa fé, a nossa esperança, o nosso amor.

Ao entrarem na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, pondo-se de joelhos, adoraram-no. Ajoelhemo-nos nós também diante de Jesus, do Deus escondido na humanidade; repitamos-lhe que não queremos voltar as costas ao seu chamamento divino, que nunca nos afastaremos dele; que arredaremos do nosso caminho tudo o que for um estorvo para a fidelidade; que desejamos sinceramente ser dóceis às suas inspirações. Tu, interiormente, e eu também - porque estou a fazer uma oração íntima, com um profundo clamor silencioso - dizemos agora ao Menino que ansiamos por ser tão cumpridores como os servos da parábola, para que também nos possa responder a nós: alegra-te servo bom o fiel.

E, abrindo os seus tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra. Detenhamo-nos um pouco para entender este passo do Santo Evangelho. Como é possível que nós, que nada somos e nada valemos, ofereçamos alguma coisa a Deus? Diz a Escritura: toda a dádiva e todo o dom perfeito vem do alto. O homem não consegue descobrir plenamente a profundidade e a beleza dos dons do Senhor: se tu conhecesses o dom de Deus… - responde Jesus à mulher samaritana. Jesus Cristo ensinou-nos a esperar tudo do Pai, a procurar antes de mais o Reino de Deus e a sua justiça, porque tudo o resto se nos dará por acréscimo e Ele conhece bem as nossas necessidades. Na economia da salvação, o nosso Pai cuida de cada alma com amor e delicadeza: cada um recebeu de Deus o seu próprio dom; uns de um modo, outros de outro. Portanto, podia parecer inútil cansarmo-nos, tentando apresentar ao Senhor algo de que Ele precise; dada a nossa situação de devedores que não têm com que saldar as dívidas, as nossas ofertas assemelhar-se-iam às da Antiga Lei, que Deus já não aceita: Tu não quiseste os sacrifícios, as oblações e os holocaustos pelo pecado, nem te são agradáveis as coisas que se oferecem segundo a Lei.

Mas o Senhor sabe que o dar é próprio dos apaixonados e Ele próprio nos diz o que deseja de nós. Não lhe interessam riquezas, nem frutos, nem animais da terra, do mar ou do ar, porque tudo isso lhe pertence. Quer algo de íntimo, que havemos de lhe entregar com liberdade: dá-me, meu filho, o teu coração. Vedes? Se compartilha, não fica satisfeito: quer tudo para si. Repito: não pretende o que é nosso; quer-nos a nós mesmos. Daí - e só daí - advêm todas as outras ofertas que podemos fazer ao Senhor.

Demos-lhe, portanto, ouro: o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e dos bens materiais. Não esqueçamos que são coisas boas, que vêm de Deus. Mas o Senhor dispôs que as utilizemos sem deixar que o coração fique preso a elas, pelo contrário, tirando delas proveito para bem da humanidade.

Os bens da terra não são maus; pervertem-se quando o homem os toma como ídolos e se prostra diante deles; mas tornam-se nobres quando os tornamos instrumentos para o bem nalguma actividade cristã de justiça e de caridade. Não podemos correr atrás dos bens económicos, como quem procura um tesouro; o nosso tesouro está aqui, deitado num presépio; é Cristo e nele se há-de concentrar todo o nosso amor, porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.

Oferecemos incenso: o desejo - que elevamos até ao Senhor - de levar uma vida recta, de que se desprenda o bonus odor Christi, o perfume de Cristo. Impregnar as nossas palavras e acções desse bonus odor é semear compreensão e amizade. Que a nossa vida acompanhe as vidas dos restantes homens, para que ninguém se encontre ou se sinta só. A caridade há-de ser também carinho, calor humano.

Assim no-lo ensina Jesus Cristo. A humanidade havia séculos que esperava a vinda do Salvador; os profetas tinham-no anunciado de mil maneiras; e - embora, por acção do pecado e da ignorância se tivesse perdido grande parte da Revelação de Deus aos homens - conservava-se até aos confins da Terra o desejo de Deus, a ânsia de redenção.

Chega a plenitude dos tempos e, para cumprir essa missão, não aparece um génio filosófico, como Sócrates ou Platão; não se instala na terra um conquistador poderoso, como Alexandre Magno. Nasce um Menino em Belém. É o Redentor do mundo; mas, antes de começar a falar, demonstra o seu amor com obras. Não é portador de nenhuma fórmula mágica, porque sabe que a salvação que nos traz há-de passar pelo coração do homem. As suas primeiras acções são risos e choros de criança, o sono inerme de um Deus humanado; para que fiquemos tomados de amor, para que saibamos acolhê-Lo nos nossos braços.

Uma vez mais consciencializamos que isto é que é o Cristianismo. Se o cristão não ama com obras, fracassa como cristão, o que significa fracassar também como pessoa. Não podes pensar nos outros homens como se fossem números, ou degraus para tu subires; como se fossem massa, para ser exaltada ou humilhada, adulada ou desprezada, conforme os casos. Tens de pensar nos outros - antes de mais, nos que estão ao teu lado - vendo neles o que na verdade são: filhos de Deus, com toda a dignidade que esse título maravilhoso lhes confere.

Com os filhos de Deus, temos de comportar-nos como filhos de Deus: o nosso amor há-de ser abnegado, diário, tecido de mil e um pormenores de compreensão, de sacrifício calado, de entrega silenciosa. Este é o bonus odor Christi que arrancava uma exclamação aos que conviviam com os primeiros cristãos: Vede como se amam!.

Não estou a falar de um ideal distante. O cristão não é um Tartarin de Tarascon, empenhado em caçar leões onde não pode encontrá-los: nos corredores da sua própria casa. Falo, sim, da vida quotidiana e concreta: da santificação do trabalho, das relações familiares, da amizade. Se não somos cristãos nestas coisas, onde podemos sê-lo? O perfume do incenso deve-se ao carvão em brasa que queima sem ostentação uma grande quantidade de grãos. Também o bonus odor Christi se manifesta entre os homens, não como a chama espectacular de um incêndio passageiro, mas mediante a eficácia de todo um rescaldo de virtudes: justiça, lealdade, fidelidade, compreensão, generosidade, alegria.

E, com os Reis Magos, oferecemos também mirra, isto é, o sacrifício, que não deve faltar na vida cristã. A mirra traz à nossa lembrança a Paixão do Senhor: na cruz, dão-lhe a beber mirra misturada com vinho, e com mirra ungiram o seu corpo para a sepultura. Mas não penseis que meditar na necessidade de sacrifício e da mortificação significa dar uma nota de tristeza a esta festa que comemoramos alegremente no dia de hoje.

Mortificação não é pessimismo nem espírito azedo. A mortificação nada vale sem a caridade: por isso, havemos de procurar mortificações que, além de nos manterem livres em relação às coisas da terra, não mortifiquem os que vivem à nossa volta. O cristão não pode ser um verdugo nem um miserável; há-de ser um homem que sabe ama com obras, que prova o seu amor na pedra de toque da dor.

Mas - insisto - essa mortificação não consistirá habitualmente em grandes renúncias, cuja oportunidade não se nos depara com frequência. Há-de estar feita de pequenas vitórias: ter um sorriso para quem nos incomoda, negar ao corpo o capricho dos bens supérfluos, habituarmo-nos a ouvir os outros, fazer render o tempo que Deus põe à nossa disposição… e tantos outros pormenores, aparentemente insignificantes - contrariedades, dificuldades, dissabores - que surgem ao longo do dia sem os procurarmos.

Sancta Maria, Stella Orientis

Termino repetindo umas palavras do Evangelho de hoje: ao entrarem em casa, viram o Menino com Maria , sua Mãe. Nossa Senhora não se separa do seu Filho . Os Reis Magos não são recebidos por um rei sentado no trono, mas por um Menino nos braços da Mãe. Peçamos, pois, à Mãe de Deus, que é nossa Mãe, que nos prepare o caminho que conduz à plenitude do amor: Cor Mariæ dulcissimum, iter para tutum! O seu suave coração conhece o caminho mais seguro para encontrarmos Cristo.

Os Reis Magos tiveram uma estrela; nós temos Maria, Stella Maris, Stella Orientis. No dia de hoje, dizemos-lhe: Santa Maria, Estrela do mar, Estrela da manhã, ajuda os teus filhos. O nosso cuidado pelas almas não deve conhecer fronteiras, porque ninguém está excluído do amor de Cristo. Os Reis Magos foram os primeiros dos gentios; mas, depois de consumada a Redenção, já não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher - não existe descriminação de espécie alguma - porque todos vós sois um só em Jesus Cristo.

Nós cristãos, não podemos ser exclusivistas, nem separar ou catalogar as almas; virão muitos do Oriente e do Ocidente; todos cabem no coração de Cristo. Voltamos a contemplá-lo no presépio; os seus braços são de menino mas são os mesmos que se abrirão na Cruz, atraindo todos os homens.

E o nosso pensamento vai também para esse homem justo, Nosso Pai e Senhor, S. José, que, como habitualmente, passa despercebido na cena da Epifania. Pressinto-o recolhido em contemplação, protegendo com amor o Filho de Deus, que, ao fazer-se homem, foi confiado à sua atenção paternal. Com a maravilhosa delicadeza de quem não vive para si, o Santo Patriarca entrega-se com um espírito de sacrifício tão silencioso como eficaz.

Falámos hoje da vida de oração e do afã de apostolado. Queremos porventura melhor mestre nesta matéria do que S. José? Se quereis que vos dê um conselho, dir-vos-ei - com palavras que venho a repetir incansavelmente desde há muitos anos: Ite ad Joseph, recorrei a S. José; ele vos mostrará caminhos concretos e meios humanos e divinos para chegar a Jesus. E em breve ousareis, tal como ele, segurar nos braços, beijar, vestir e cuidar deste Menino Deus que nasceu para nós. Em sinal de veneração, os Magos ofereceram a Jesus ouro, incenso e mirra; José deu-lhe plenamente o coração jovem, cheio de amor.

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