O Grande Desconhecido

*Homilia pronunciada no dia 25 de Maio de 1969, Festa de Pentecostes.

Os Actos dos Apóstolos, ao narrarem-nos os acontecimentos daquele dia de Pentecostes em que o Espírito Santo desceu em forma de línguas de fogo sobre os discípulos de Nosso Senhor, levam-nos a assistir à grande manifestação do poder de Deus com que a Igreja iniciou a sua caminhada por entre as nações. A vitória que Cristo obtivera sobre a morte e sobre o pecado - com a sua obediência, a sua imolação na Cruz e a sua Ressurreição - revelou-se então em todo o seu esplendor divino.

Os discípulos, que já tinham sido testemunhas da glória do Ressuscitado, experimentaram em si a força do Espírito Santo: as suas inteligências e os seus corações abriram-se a uma nova luz. Tinham seguido Cristo e recebido com fé a sua doutrina; mas nem sempre conseguiam penetrar totalmente no sentido desta. Era necessário que viesse o Espírito de Verdade para lhes fazer compreender todas as coisas. Sabiam que só em Jesus podiam encontrar palavras de vida eterna e estavam dispostos a segui-Lo e a dar a vida por Ele; mas eram fracos e, quando chegou a hora da provação, fugiram, deixaram-nO só. No dia de Pentecostes tudo isso passou: o Espírito Santo, que é espírito de fortaleza, tornou-os firmes, seguros, audazes. A palavra dos Apóstolos ressoa então, forte e vibrante, pelas ruas e praças de Jerusalém.

Os homens e as mulheres vindos das mais diversas regiões, que naqueles dias povoam a cidade, escutam assombrados. Partos, medos e elamitas, e os que habitam a Mesopotâmia, a Judeia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frígia e a Panfília, o Egipto e várias partes da Líbia que é vizinha de Cirene, e os que vieram de Roma, tanto judeus como prosélitos,, cretenses e árabes, todos os ouvimos falar, nas nossas próprias línguas, das maravilhas de Deus. Estes prodígios, que se realizam diante dos seus olhos, levam-nos a prestar atenção à pregação apostólica. O mesmo Espírito Santo, que actua nos discípulos do Senhor, tocou-lhes também nos corações e conduziu-os à Fé.

Conta-nos S. Lucas que, depois de S. Pedro ter falado, proclamando a Ressurreição de Cristo, muitos dos que o rodeavam se aproximaram, perguntando: que havemos de fazer, irmãos? E o Apóstolo respondeu-lhes: Fazei penitência, e cada um de vós seja baptizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. E o texto sagrado termina dizendo-nos que nesse dia se incorporaram na Igreja cerca de três mil pessoas.

A vinda solene do Espírito Santo no dia de Pentecostes não foi um acontecimento isolado. Quase não há uma página dos Actos dos Apóstolos emque se não fale d'Ele e da acção pela qual guia, dirige e anima a vida e as obras da primitiva comunidade cristã. É Ele que inspira a pregação de S. Pedro, que confirma na fé os discípulos, que sela com a sua presença o chamamento dirigido aos gentios e, que envia Saulo e Barnabé para terras distantes, a fim de abrirem novos caminhos à doutrina de Jesus. Numa palavra, a sua presença e a sua actuação dominam tudo.

O renascimento baptismal

Esta realidade profunda que o texto da Sagrada Escritura nos dá a conhecer não é uma simples recordação do passado, de uma espécie de idade de ouro da Igreja, perdida na História. Por cima das misérias e dos pecados de cada um de nós, continua a ser a realidade da Igreja de hoje e da Igreja de todos os tempos. Eu rogarei ao Pai - anunciou o Senhor aos seus discípulos - e Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco eternamente. Jesus cumpriu as suas promessas: ressuscitou, subiu aos Céus e, em união com o Eterno Pai, envia-nos o Espírito Santo para nos santificar e nos dar a vida.

A força e o poder de Deus iluminam a face da Terra. O Espírito Santo continua a assistir à Igreja de Cristo, para que ela seja - sempre e em tudo - sinal erguido diante das nações, anunciando à Humanidade a benevolência e o amor de Deus. Por maiores que sejam as nossas limitações, nós, homens, podemos olhar com confiança para os Céus e sentir-nos cheios de alegria: Deus ama-nos e liberta-nos dos nossos pecados. A presença e a acção do Espírito Santo na Igreja são o penhor e a antecipação da felicidade eterna, dessa alegria e dessa paz que Deus nos prepara.

Também nós, tal como aqueles primeiros que se aproximaram de S. Pedro no dia de Pentecostes, fomos baptizados. No baptismo, o Nosso Pai, Deus, tomou posse das nossas vidas, incorporou-nos na vida de Cristo e enviou-nos o Espírito Santo. O Senhor, diz-nos a Sagrada Escritura, salvou-nos fazendo-nos renascer pelo baptismo, renovando-nos pelo Espírito Santo, que Ele difundiu sobre nós abundantemente por Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de que, justificados pela sua graça, sejamos herdeiros da vida eterna, segundo a esperança.

A experiência da nossa debilidade e das nossas faltas, a desedificação que pode produzir o espectáculo doloroso da pequenez ou mesmo mesquinhez de alguns que se chamam cristãos, o aparente fracasso ou a desorientação de algumas iniciativas apostólicas, tudo isso - a comprovação da realidade do pecado e das limitações humanas - pode constituir, no entanto, uma provação para a nossa fé e fazer com que se insinuem em nós a tentação e a dúvida: onde estão a força e o poder de Deus? É o momento de reagirmos, de pormos em prática da maneira mais pura e firme a nossa esperança e, portanto, de procurarmos ser mais firme na nossa fidelidade.

Permiti-me narrar um facto da minha vida pessoal, ocorrido já há muitos anos. Certo dia, um amigo de bom coração, mas que não tinha fé, disse-me, indicando um mapa-mundi: - Ora veja, de norte a sul e de leste a oeste. - Que queres que eu veja? - O fracasso de Cristo. Tantos séculos a procurar meter na vida dos homens a sua doutrina, e veja os resultados.. Num primeiro momento, enchi-me de tristeza: é uma grande dor, efectivamente, considerar que são muitos os que ainda não conhecem o Senhor e que, entre aqueles que O conhecem, são muitos também os que vivem como se O não conhecessem.

Mas essa impressão durou apenas um instante, para logo dar lugar ao amor e à acção de graças, porque Jesus quis que cada um dos homens fosse cooperador livre da sua obra redentora. Cristo não fracassou: a sua doutrina está continuamente a fecundar o Mundo. A redenção realizada por Ele é suficiente e superabundante.

Deus não quer escravos, mas sim filhos e, portanto, respeita a nossa liberdade. A salvação continua e nós participamos dela: é vontade de Cristo que - segundo as palavras fortes de S. Paulo - cumpramos na nossa carne, na nossa vida, o que falta à sua Paixão, pro Corpore eius, quod est Ecclesia, em benefício do seu corpo, que é a Igreja.

Vale a pena jogar a vida, entregar-se por inteiro, para corresponder ao amor e à confiança que Deus deposita em nós. Vale a pena, acima de tudo, que nos decidamos a tomar a sério a nossa fé cristã. Quando recitamos o Credo, professamos crer em Deus Pai Todo-Poderoso, em seu Filho Jesus Cristo que morreu e foi ressuscitado, no Espírito Santo, Senhor que dá a vida. Confessamos que a Igreja una, santa, católica e apostólica, é o corpo de Cristo, animado pelo Espírito Santo. Alegramo-nos com a remissão dos nossos pecados e com a esperança da futura ressurreição. Mas, essas verdades penetrarão até ao fundo do coração ou ficarão apenas nos lábios? A mensagem divina de vitória, alegria e paz do Pentecostes deve ser o fundamento inquebrantável do modo de pensar, de reagir e de viver de todo o cristão.

Força de Deus e fraqueza humana

Non est abbreviata manus Domini, a mão de Deus não diminuiu; Deus não é menos poderoso hoje do que em outras épocas, nem é menos verdadeiro o seu amor pelos homens. A nossa fé ensina-nos que a criação inteira, o movimento da Terra e dos astros, as acções rectas das criaturas e tudo quando há de positivo no decurso da História, tudo, numa palavra, veio de Deus e a Deus se ordena.

A acção do Espírito Santo pode passar-nos despercebida, porque Deus não nos dá a conhecer os seus planos e porque o pecado do Homem turva e obscurece os dons divinos. Mas a Fé recorda-nos que o Senhor age constantemente: Ele é que nos criou e nos conserva no ser; Ele, com a sua graça, conduz a criação inteira para a liberdade da glória dos filhos de Deus.

Por isso, a Tradição cristã resumiu a atitude que devemos adoptar para com o Espírito Santo num só conceito: docilidade. Sermos sensíveis àquilo que o Espírito divino promove à nossa volta e em nós mesmos: aos carismas que distribui, aos movimentos e instituições que suscita, aos efeitos e decisões que faz nascer nos nossos corações… O Espírito Santo realiza no Mundo as obras de Deus. Como diz o hino litúrgico, é dador das graças, luz dos corações, hóspede da alma, descanso no trabalho, consolo no pranto. Sem a sua ajuda nada há no homem que seja inocente e valioso, pois é Ele que lava o que está sujo, que cura o que está doente, que aquece o que está frio, que corrige o extraviado, que conduz os homens ao porto da salvação e do gozo eterno.

Mas esta nossa fé no Espírito Santo deve ser plena e completa. Não é uma crença vaga na sua presença no mundo; é uma aceitação agradecida dos sinais e realidades a que quis vincular a sua força de um modo especial. Quando vier o Espírito de Verdade - anunciou Jesus - Ele Me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará. O Espírito Santo é o Espírito enviado por Cristo, para operar em nós a santificação que Ele nos mereceu para nós na Terra.

É por isso que não pode haver fé no Espírito Santo, se não houver fé em Cristo, na doutrina de Cristo, nos sacramentos de Cristo, na Igreja de Cristo. Não é coerente com a fé cristã, não crê verdadeiramente no Espírito Santo, quem não ama a Igreja, quem não tem confiança nela, quem se compraz apenas em mostrar as deficiências e limitações dos que a representam, quem a julga por fora e é incapaz de se sentir seu filho.

E sou levado a considerar até que ponto será extraordinariamente importante e abundantíssima a acção do Divino Paráclito enquanto o sacerdote renova o sacrifício do Calvário, quando celebra a Santa Missa nos nossos altares.

Nós, os cristãos, trazemos em vasos de barro os grandes tesouros da graça: Deus confiou os seus dons à frágil e débil liberdade humana e, embora a sua força certamente nos assista, a nossa concupiscência, o nosso comodismo e o nosso orgulho repelem-na por vezes e levam-nos a cair em pecado. Em muitas ocasiões, de há mais de um quarto de século para cá, ao recitar o Credo e ao afirmar a minha fé na divindade da Igreja, una, santa, católica e apostólica, costumo acrescentar: apesar dos pesares. Quando alguma vez me acontece comentar este costume e alguém me pergunta a que quero referir-me, respondo: aos teus pecados e aos meus.

Tudo isto é certo, mas não autoriza de maneira nenhuma a julgar a Igreja por critérios humanos, sem fé teologal, atendendo apenas ao maior ou menor valor de certos eclesiásticos ou de certos cristãos. Proceder assim é ficar à superfície. O mais importante na Igreja não é ver como correspondemos nós, os homens, mas sim o que Deus realiza. A Igreja é isto mesmo: Cristo presente entre nós; Deus que vem até à humanidade para a salvar, chamando-nos com a sua revelação, santificando-nos com a sua graça, sustentando-nos com a sua ajuda constante, nos pequenos e grandes combates da vida de todos os dias.

Podemos chegar a desconfiar dos homens, e cada um está obrigado a desconfiar pessoalmente de si mesmo e a concluir cada um dos seus dias com um mea culpa, com um acto de contrição profundo e sincero. Mas não temos o direito de duvidar de Deus. E duvidar da Igreja, da sua origem divina, da eficácia salvífica da sua pregação e dos seus sacramentos, é duvidar do próprio Deus; é não acreditar plenamente na realidade da vinda do Espírito Santo.

Antes de Cristo ser crucificado, - escreve S. João Crisóstomo - não havia nenhuma reconciliação. E, enquanto não houve reconciliação, não foi enviado o Espírito SantoA ausência do Espírito Santo era sinal da ira divina. Agora que O vês enviado em plenitude, não duvides da reconciliação. Mas, se perguntarem: onde está agora o Espírito Santo? Falar da sua presença quando se davam milagres, quando eram ressuscitados os mortos e curados os leprosos, era possível; mas como saber, agora, que está deveras presente? Não vos preocupeis. Hei-de demonstrar-vos que o Espírito Santo está também agora entre nós

Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos dizer Senhor, Jesus, pois ninguém pode invocar Jesus como Senhor senão no Espírito Santo (I Cor. 12,3).

Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos dizer Senhor, Jesus, pois ninguém pode invocar jesus como Senhor senão no Espírito Santo (I Cor 12,3). Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos orar com confiança, porque ao rezar dizemos Pai Nosso, que estais nos Céus (Mat. 6,9). Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos chamar Pai a Deus. Como sabemos isso? É porque o Apóstolo nos ensina: E, porque somos filhos, Deus mandou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba Pai (Gal, 4,6).

Portanto, quando invocares Deus Pai, recorda-te de que foi o Espírito Santo que, ao mover a tua alma, te deu essa oração. Se não existisse o Espírito Santo, não haveria na Igreja palavra alguma de sabedoria ou de ciência, pois está escrito: Porque… a um é dada pelo Espírito a palavra da sabedoria (I Cor, 12, 8)… Se o Espírito Santo não estivesse presente, a Igreja não existiria. Mas, se a Igreja existe, é certo que o Espírito Santo não falta.

Acima das deficiências e limitações humanas, repito, a Igreja é isto: sinal e, de certo modo - não no sentido estrito em que dogmaticamente se definiu a essência dos sete sacramentos da Nova Aliança - o sacramento universal da presença de Deus no Mundo. Ser cristão é ter sido regenerado por Deus e enviado aos homens para lhes anunciar a salvação. Se tivéssemos fé firme e viva e déssemos a conhecer Cristo com audácia, veríamos que ante os nossos olhos se realizariam milagres como os da era apostólica.

Porque a verdade é que também agora se dá vista aos cegos, que tinham perdido a capacidade de olhar para o Céu e de contemplar as maravilhas de Deus; também agora se dá liberdade a coxos e entrevados, que se encontravam tolhidos pelas próprias paixões e cujo coração já não sabia amar; também agora se dá ouvido aos surdos, que não desejavam o conhecimento de Deus, e se consegue que falem os mudos, que tinham amordaçada a língua por não quererem confessar as suas derrotas; também agora se ressuscitam mortos, em que o pecado destruíra a vida. Mais uma vez se verifica que a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes. E, como os primeiros fiéis cristãos, também nós nos alegramos ao admirar a força do Espírito Santo e a sua acção na inteligência e na vontade das suas criaturas.

Dar a conhecer a Cristo

Todos os acontecimentos da vida - os de cada existência individual e, de algum modo, os das grandes encruzilhadas da História - vejo-os como outros tantos chamamentos que Deus faz aos homens para olharem de frente a verdade e como ocasiões oferecidas a nós, cristãos, para anunciarmos com as nossas obras e as nossas palavras, auxiliados pela graça, o Espírito a que pertencemos.

Cada geração de cristãos deve redimir e santificar o seu tempo: para tanto, precisa de compreender e de compartilhar os anseios dos homens, seus iguais, a fim de lhes dar a conhecer, com dom de línguas, como corresponder à acção do Espírito Santo, à efusão permanente das riquezas do Coração divino. A nós, cristãos, compete anunciar nestes dias, ao mundo a que pertencemos e em que vivemos, a antiga e sempre nova mensagem do Evangelho.

Não é verdade que toda a gente de hoje - assim, em geral ou em bloco - esteja fechada ou permaneça indiferente ao que a fé cristã ensina sobre o destino e o ser do Homem. Não é certo que os homens do nosso tempo se ocupem só das coisas da Terra e se desinteressem de olhar para o Céu. Embora não faltem ideologias - e pessoas para as sustentarem - que estão fechadas, na nossa época não há apenas atitudes rasteiras, mas também altos ideais; não há apenas cobardia, mas heroísmo, e ao lado das desilusões permanecem grandes aspirações. Há pessoas que sonham com um mundo novo, mais justo e mais humano, enquanto outras, talvez decepcionadas diante do fracasso dos seus primeiros ideais, se refugiam no egoísmo de buscarem a sua própria tranquilidade ou de se deixarem ficar mergulhadas no erro.

A todos os homens e todas as mulheres, estejam onde estiverem, em momentos de exaltação ou de crise ou de derrota, devemos fazer chegar o anúncio solene e claro de S. Pedro, durante os dias que se seguiram ao Pentecostes: Jesus é a pedra angular, o Redentor, tudo da nossa vida, pois fora d'Ele não foi dado outro nome, aos homens, debaixo do céu, pelo qual possamos ser salvos

Entre os dons do Espírito Santo, eu diria que há um de que todos nós, cristãos, temos especial necessidade: o dom da Sabedoria, que, fazendo-nos conhecer a Deus e tomar-Lhe o sabor, nos coloca em condições de poder julgar com verdade as situações e as coisas da vida presente. Se fôssemos consequentes com a nossa fé, quando olhássemos à nossa volta e contemplássemos o espectáculo da História e do Mundo, não poderíamos deixar de sentir crescer nos nossos corações os mesmos sentimentos que animaram o de Jesus Cristo: ao ver aquelas multidões, compadeceu-se delas, porque estavam maltratadas e fatigadas e como ovelhas sem pastor.

Não é que o cristão não veja todo o bem que há na Humanidade, não aprecie as alegrias puras, não participe dos anseios e dos ideais terrenos. Pelo contrário, sente tudo isso desde o mais recôndito da alma e compartilha-o e vive-o com especial intensidade, pois conhece melhor do que ninguém os arcanos do espírito humano.

A fé cristã não nos torna pusilânimes nem cerceia os impulsos nobres da alma, pois é ela que os engrandece, ao revelar o seu verdadeiro e mais autêntico sentido: não estamos destinados a uma felicidade qualquer, porque fomos chamados à intimidade divina, a conhecer e amar Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo e, na Trindade e na Unidade de Deus, todos os anjos e todos os homens.

Essa é a grande ousadia da fé cristã: proclamar o valor e a dignidade da natureza humana e afirmar que, mediante a graça que nos eleva à ordem sobrenatural, fomos criados para alcançar a dignidade de filhos de Deus. Ousadia de certo incrível, se não se baseasse no desígnio salvador de Deus Pai e não houvesse sido confirmada pelo Sangue de Cristo e reafirmada e tornada possível pela acção constante do Espírito Santo.

Temos de viver de Fé, crescer na Fé, até poder dizer de cada um de nós, de cada cristão, o que há muitos séculos escreveu um dos grandes Doutores da Igreja Oriental: Da mesma maneira que os corpos transparentes e límpidos, quando recebem os raios luminosos, se tornam resplandecentes e irradiam brilho, assim as almas que são conduzidas e iluminadas pelo Espírito Santo se tornam também espirituais e levam às outras a luz da graça. Do Espírito Santo procede o conhecimento das coisas futuras, a inteligência dos mistérios, a compreensão das verdades ocultas, a distribuição dos dons, a cidadania celeste, a conversação com os Anjos. D'Ele, a alegria que nunca termina, a perseverança em Deus, a semelhança com Deus e - a coisa mais sublime que pode ser pensada - a transformação em Deus

A consciência da grandeza da dignidade humana - de um modo eminente e inefável, pois fomos, pela acção da graça, constituídos filhos de Deus - é no cristão uma só coisa com a humildade, visto que não são as nossas forças que nos salvam e nos dão a vida, mas o favor divino. É uma verdade que não se pode esquecer, porque senão pervertia-se o nosso endeusamento, convertendo-se em presunção, em soberba e, mais cedo ou mais tarde, em ruína espiritual perante a experiência da nossa fraqueza e miséria.

Atrever-me-ei a dizer que sou santo? - perguntava a si mesmo Santo Agostinho - Se dissesse santo como santificador e não necessitado de ninguém que me santificasse, seria soberbo e mentiroso. Mas, se entendo por santo o santificado, segundo aquilo que se lê no Levítico: sede santos, porque Eu, Deus, sou santo, então também o corpo de Cristo, até ao último homem situado nos confins da Terra, poderá dizer ousadamente, unido à sua Cabeça e a ela subordinado: sou santo

Amemos a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade; escutemos na intimidade do nosso ser as moções divinas - alentos, censuras - ; caminhemos sobre a Terra dentro da luz derramada na nossa alma; e o Deus da esperança nos encherá de todas as formas de paz, para que essa esperança vá crescendo em nós cada vez mais, pela virtude do Espírito Santo.

Amizade com o Espírito Santo

Viver segundo o Espírito Santo é viver de Fé, de Esperança, de Caridade; é deixar que Deus tome posse de nós e mude os nossos corações desde a raiz, para os fazer à sua medida. Uma vida cristã madura, profunda e firme não é coisa que se improvise, porque é fruto do crescimento em nós da graça de Deus. Nos Actos dos Apóstolos, descreve-se a situação da primitiva comunidade cristã numa frase breve, mas cheia de sentido: perseveravam todos na doutrina dos Apóstolos e na comum fracção do pão e nas orações.

Assim viveram os primeiros cristãos e assim devemos viver nós: a meditação da doutrina da Fé, de modo assimilá-la, o encontro com Cristo na Eucaristia, o diálogo pessoal - a oração sem anonimato - face a face com Deus, hão-de constituir como que a substância última da nossa vida. Se isso faltar, talvez haja reflexão erudita, actividade mais ou menos intensa, devoções e práticas piedosas. Não haverá, porém, existência cristã autêntica, porque faltará a compenetração com Cristo, a participação real e vivida na obra divina da salvação.

A qualquer cristão se aplica esta doutrina, porque todos estamos igualmente chamados à santidade. Não há cristãos de segunda classe, obrigados a pôr em prática apenas uma versão reduzida do Evangelho: todos recebemos o mesmo baptismo e, embora exista uma ampla diversidade de carismas e de situações humanas, um mesmo é o Espírito que distribui os dons divinos, uma mesma a Fé, uma só a Esperança, uma só a Caridade.

Podemos, pois, ter por dirigida a nós mesmos a pergunta do Apóstolo: não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?, e recebê-la como um convite a um trato mais pessoal e directo com Deus. Infelizmente, o Paráclito é para alguns cristãos o Grande Desconhecido, um nome que se pronuncia, mas que não é Alguém - uma das Três Pessoas do Único Deus - com Quem se fala e de Quem se vive.

Ora é indispensável ter com Ele familiaridade e confiança, cheia de simplicidade como nos ensina a Igreja através da Liturgia. Assim conheceremos melhor Nosso Senhor e ao mesmo tempo compreenderemos melhor o imenso dom que significa ser cristão; veremos como é grande e verdadeiro o "endeusamento", a participação na vida divina a que atrás me referi.

Porque o Espírito Santo não é um artista que desenha em nós a divina substância, como se lhe fosse alheio; não é assim que nos conduz à semelhança divina: é Ele mesmo, que é Deus e de Deus procede, que Se imprime nos corações que O recebem, à maneira de selo sobre a cera, e é assim, por comunicação de si mesmo e pela semelhança, que restabelece a natureza segundo a beleza do modelo divino e restitui ao homem a imagem de Deus.

Para pôr em prática, ainda que seja de um modo muito genérico, um estilo de vida que nos anime a conviver com o Espírito Santo - e, ao mesmo tempo com o Pai e o Filho - numa verdadeira intimidade com o Paráclito, devemos firmar-nos em três realidades fundamentais: docilidade - digo-o mais uma vez - vida de oração, união com a Cruz.

Em primeiro lugar, docilidade - porque é o Espírito Santo que, com as suas inspirações, vai dando tom sobrenatural aos nossos pensamentos, desejos e obras. É Ele que nos impele a aderir à doutrina de Cristo e a assimilá-la em profundidade; que nos dá luz para tomar consciência da nossa vocação pessoal e força para realizar tudo o que Deus espera de nós. Se formos dóceis ao Espírito Santo, a imagem de Cristo ir-se-á formando, cada vez mais nítida, em nós e assim nos iremos aproximando cada vez mais de Deus Pai. Os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus.

Se nos deixarmos guiar por esse princípio de vida, presente em nós, que é o Espírito Santo, a nossa vitalidade espiritual irá crescendo e abandonar-nos-emos nas mãos do nosso Pai Deus, com a mesma espontaneidade e confiança com que um menino se lança nos braços do pai. Se não vos tornardes como meninos, não entrareis no Reino dos Céus, disse o Senhor. É este o antigo e sempre actual caminho da infância espiritual, que não é sentimentalismo nem falta de maturidade humana, mas sim maioridade sobrenatural, que nos leva a aprofundar as maravilhas do amor divino, reconhecer a nossa pequenez e a identificar plenamente a nossa vontade com a de Deus.

egundo lugar, vida de oração, porque a entrega, a obediência, a mansidão do cristão nascem do amor e para o amor caminham. E o amor conduz ao convívio, à conversação, à intimidade. A vida cristã requer um diálogo constante com Deus Uno e Trino, e é a essa intimidade que o Espírito Santo nos conduz. Quem conhece as coisas que são do homem, senão o espírito do homem, que está nele? Assim também as coisas que são de Deus, ninguém as conhece senão o Espírito de Deus. Se tivermos assídua relação com o Espírito Santo, também nós nos faremos espirituais, nos sentiremos irmãos de Cristo e filhos de Deus, a Quem não teremos dúvida de invocar como Pai nosso que é.

Acostumemo-nos a conviver com o Espírito Santo, que é quem nos há-de santificar; a confiar n'Ele, a pedir a sua ajuda, a senti-Lo ao pé de nós. Assim se irá tornando maior o nosso pobre coração, e teremos mais desejos de amar a Deus e, por Ele, a todas as criaturas. E nas nossas vidas reproduzir-se-á a visão com que termina o Apocalipse: o Espírito e a Esposa, o Espírito Santo e a Igreja - e cada um dos cristãos - dirigem-se a Jesus Cristo, pedindo-lhe que venha, que esteja connosco para sempre.

Por último, união com a Cruz. Porque, na vida de Cristo, o Calvário precedeu a Ressurreição e o Pentecostes, e esse mesmo processo deve reproduzir-se na vida de cada cristão: somos - diz-nos S. Paulo - co-herdeiros de Cristo; mas isto, se sofrermos com Ele, para sermos com Ele glorificados. O Espírito Santo é o fruto da Cruz, da entrega total a Deus, de buscarmos exclusivamente a sua glória e de renunciarmos completamente a nós mesmos.

Só quando o homem, sendo fiel à graça, se decide a colocar no centro da sua alma a Cruz, negando-se a si mesmo por amor de Deus, estando realmente desapegado do egoísmo e de toda a falsa segurança humana, quer dizer, só quando vive verdadeiramente de Fé, é que recebe com plenitude o grande fogo, a grande luz, a grande consolação do Espírito Santo.

É então que vêm à alma essa paz e essa liberdade que Cristo ganhou para nós e que se nos comunicam com a graça do Espírito Santo. Os frutos do Espírito Santo são caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, mansidão, fé, modéstia, continência, castidade; e onde está o Espírito do Senhor, aí há libeldade.

No meio das limitações inseparáveis da nossa situação presente, porque o pecado ainda habita em nós de algum modo, o cristão vê com nova clareza toda a riqueza da sua filiação divina, quando se reconhece plenamente livre porque trabalha nas coisas do seu Pai, quando a sua alegria se torna constante por nada ser capaz de lhe destruir a esperança.

Pois é também nesse momento que é capaz de admirar todas as belezas e maravilhas da Terra, de apreciar toda a riqueza e toda a bondade, de amar com a inteireza e a pureza para que foi criado o coração humano.

Também é nessa altura que a dor perante o pecado não degenera num gesto amargo, desesperado ou altivo porque a compunção e o conhecimento da fraqueza humana conduzem-no a identificar-se outra vez com as ânsias redentoras de Cristo e a sentir mais profundamente a solidariedade com todos os homens. É então, finalmente, que o cristão experimenta em si com segurança a força do Espírito Santo, de tal maneira que as suas quedas pessoais não o abatem; são um convite a recomeçar e a continuar a ser testemunha fiel de Cristo em todas as encruzilhadas da Terra, apesar das misérias pessoais, que nestes casos costumam ser faltas leves, que apenas turvam a alma; e, ainda que fossem graves, acudindo ao Sacramento da Penitência com compunção, volta-se à paz de Deus e a ser de novo uma boa testemunha das suas misericórdias.

Tal é, em breve resumo que mal consegue traduzir em pobres palavras humanas a riqueza da fé, a vida do cristão, quando se deixa guiar pelo Espírito Santo. Não posso, portanto, terminar melhor do que fazendo minha a súplica que se contém num dos hinos litúrgicos da festa de Pentecostes, que é como um eco da oração incessante da Igreja inteira: Vem, Espírito Criador, visita as inteligências dos teus, enche de graça celeste os corações que criaste. Na tua escola, faz-nos conhecer o Pai e também o Filho; faz, enfim, com que acreditemos eternamente em Ti, Espírito que procedes de Um e do Outro.

Este capítulo noutra língua