O fim sobrenatural da Igreja

Para começar, gostaria de vos recordar umas palavras de S. Cipriano: A Igreja universal apresenta-se-nos como um povo cuja unidade é obtida a partir da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Não estranhem, portanto, que nesta festa da Santíssima Trindade a homilia trate da Igreja, tanto mais que a Igreja tem as suas raízes no mistério fundamental da nossa fé católica: o de Deus uno em essência e trino em pessoas.

A Igreja centrada na Trindade: eis como sempre a consideraram os Padres. Reparem como são claras as palavras de Santo Agostinho: Deus habita no seu templo; não apenas o Espírito Santo, mas igualmente o Pai e o Filho… Por isso, a Santa Igreja é o templo de Deus, ou seja, de toda a Trindade.

Ao reunirmo-nos de novo no próximo Domingo, consideraremos outro dos aspectos maravilhosos da Santa Igreja: essas notas que recitaremos dentro de pouco, no Credo, depois de cantar a nossa fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Et in Spiritum Sanctum, dizemos. E, logo a seguir, et unam, sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam, confessamos que há uma só Igreja, Santa, Católica e Apostólica.

Todos aqueles que amaram verdadeiramente a Igreja souberam relacionar estas quatro notas com o mais inefável mistério da nossa santa religião: a Santíssima Trindade. Nós cremos na Igreja de Deus, Una, Santa, Católica e Apostólica, na qual recebemos a doutrina; conhecemos o Pai, o Filho e o Espírito Santo e somos baptizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo .

Momentos difíceis

É necessário meditarmos frequentemente, para não corrermos o risco de nos esquecermos, que a Igreja é um mistério grande, profundo. Nunca poderá ser abarcado nesta terra. Se a razão tentasse explicá-lo por si só, veria apenas a reunião de pessoas que cumprem certos preceitos, que pensam de forma parecida. Mas isso não seria a Santa Igreja.

Na Santa Igreja os católicos encontramos a nossa fé, as nossas normas de conduta, a nossa oração, o sentido de fraternidade, a comunhão com todos os irmãos que já desapareceram e que estão a purificar-se no Purgatório - Igreja padecente-, ou com os que já gozam da visão beatífica - Igreja triunfante-, amando eternamente Deus, três vezes Santo. É a Igreja que permanece aqui e, ao mesmo tempo, transcende a história. A Igreja que nasceu sob o manto de Santa Maria e continua a louvá-la como Mãe na terra e no céu.

Confirmemos em nós mesmos o carácter sobrenatural da Igreja; confessemo-lo aos gritos, se for preciso, porque nestes momentos são muitos aqueles que - embora fisicamente dentro da Igreja, e até em altas posições - se esqueceram destas verdades capitais e pretendem apresentar uma imagem da Igreja que não é Santa, que não é Una, que não pode ser Apostólica porque não se apoia na rocha de Pedro, que não é Católica porque está sulcada por particularismos ilegítimos, por caprichos de homens.

Não é novidade. Desde que Jesus Cristo fundou a Santa Igreja, esta Mãe, que é nossa Mãe, sofreu uma perseguição constante. Talvez noutras épocas as agressões se organizassem abertamente; agora, em muitos casos, trata-se de uma perseguição camuflada. Seja como for, hoje, como ontem, há quem continue a combater a Igreja.

Repetirei mais uma vez que não sou pessimista, nem por temperamento nem por hábito. Como é possível ser pessimista se Nosso Senhor prometeu que estará connosco até ao fim dos séculos? A efusão do Espírito Santo plasmou, na reunião dos discípulos no Cenáculo, a primeira manifestação pública da Igreja.

O nosso Pai Deus - Pai amoroso que cuida de nós como da menina dos olhos, conforme nos diz a Escritura com uma expressão tão gráfica, para podermos perceber - não cessa de santificar, pelo Espírito Santo, a Igreja fundada pelo seu Filho muito amado. Mas a Igreja vive actualmente dias difíceis: são anos de grande desconcerto para as almas. O clamor da confusão levanta-se por toda a parte e renascem com estrondo todos os erros que houve ao longo dos séculos.

Fé. Precisamos de fé. Se olharmos com olhos de fé, descobrimos que a Igreja contém em si mesma e difunde à sua volta a sua própria apologia. Quem a contempla, quem a estuda com olhos de amor à verdade, deve reconhecer que ela, independentemente dos homens que a compõem, e das modalidades práticas com que se apresenta, leva em si mesma uma mensagem de luz universal e única, libertadora e necessária, divina.

Quando ouvimos vozes de heresia - porque são exactamente isso, nunca me agradaram os eufemismos-, quando observamos que se ataca impunemente a santidade do matrimónio e do sacerdócio; a concepção imaculada da Nossa Mãe Santa Maria e a sua virgindade perpétua, com todos os restantes privilégios e excelências com que Deus a adornou; o milagre perene da presença real de Jesus Cristo na Sagrada Eucaristia, o primado de Pedro, a própria Ressurreição de Nosso Senhor, como não sentir a alma cheia de tristeza? Mas tenham confiança: a Santa Igreja é incorruptível. A Igreja vacilará se o seu fundamento vacilar, mas poderá Cristo vacilar? Enquanto Cristo não vacilar, a Igreja jamais fraquejará até ao fim dos tempos .

O humano e o divino na Igreja

Assim como em Cristo há duas naturezas - a humana e a divina - também, por analogia, podemos referir-nos à existência na Igreja de um elemento humano e de um elemento divino. A ninguém passa despercebida a evidência dessa parte humana. A Igreja, neste mundo, está composta por homens e para homens, e dizer homem é falar da liberdade, da possibilidade de actos grandes e de actos mesquinhos, de heroísmos e de claudicações.

Se só admitíssemos essa parte humana da Igreja nunca conseguiríamos compreendê-la, pois não teríamos chegado à porta do mistério. A Sagrada Escritura utiliza muitos termos - tirados da experiência terrena - para os aplicar ao Reino de Deus e à sua presença entre nós, na Igreja. Compara-a ao redil, ao rebanho, à casa, à semente, à vinha, ao campo onde Deus planta ou edifica. Mas destaca uma expressão que compendia tudo: a Igreja é o Corpo de Cristo.

E Ele a uns constituiu Apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores, para o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo. São Paulo escreve também que somos um só corpo em Cristo, e cada um de nós membros uns dos outros. Como é luminosa a nossa fé! Todos somos em Cristo, porque Ele é a Cabeça do corpo da Igreja.

É a fé que os cristãos sempre confessaram. Ouçam comigo estas palavras de Santo Agostinho: e desde então Cristo está formado pela cabeça e pelo corpo, verdade que, não duvido, conheceis bem. A cabeça é o nosso próprio Salvador, que padeceu sob Pôncio Pilatos e agora, depois de ressuscitar de entre os mortos, está sentado à direita do Pai. E o Seu corpo é a Igreja. Não esta ou aquela igreja, mas a que se encontra espalhada por todo o mundo. Nem sequer é apenas a que existe entre os homens actuais, uma vez que a ela pertencem também os que viveram antes de nós e os que hão-de existir depois, até ao fim do mundo. Assim, toda a Igreja, formada pela reunião dos fiéis - e porque todos os fiéis são membros de Cristo-, possui Cristo como Cabeça, que governa do Céu o Seu corpo. E, embora esta Cabeça se encontre fora da vista do corpo, está unida pelo amor.

Agora compreendem porque não se pode separar a Igreja visível da Igreja invisível. A Igreja é, simultaneamente, corpo místico e corpo jurídico. Pelo próprio facto de ser corpo, a Igreja distingue-se com os olhos, ensinou Leão XIII. No corpo visível da Igreja - no comportamento dos homens que dela fazemos parte aqui na terra - aparecem misérias, vacilações, traições. Mas a Igreja não se esgota aí, nem se confunde com essas condutas erradas: pelo contrário, não faltam, aqui e agora, generosidades, afirmações heróicas, vidas de santidade que não fazem barulho, que se consomem com alegria no serviço dos irmãos na fé e de todas as almas.

Considerem também que, se as claudicações superassem numericamente as atitudes corajosas, ficaria ainda essa realidade mística - clara, inegável, embora a não percebamos com os sentidos - que é o Corpo de Cristo, o próprio Senhor Nosso, a acção do Espírito Santo, a presença amorosa do Pai.

A Igreja é, por conseguinte, inseparavelmente humana e divina. É sociedade divina pela sua origem, sobrenatural pelo seu fim e pelos meios que se ordenam proximamente a esse fim; mas, na medida em que se compõe de homens, é uma comunidade humana. Vive e actua no mundo, mas o seu fim e a sua força não estão na terra, mas no Céu.

Enganar-se-iam gravemente aqueles que procurassem separar uma Igreja carismática - que seria a verdadeiramente fundada por Cristo-, doutra jurídica ou institucional, que seria obra dos homens e simples efeito de contingências históricas. Só há uma Igreja. Cristo fundou uma única Igreja: visível e invisível, com um corpo hierárquico e organizado, com uma estrutura fundamental de direito divino e uma íntima vida sobrenatural que a anima, sus - tenta e vivifica.

E não é possível deixar de recordar que Nosso Senhor, ao instituir a Sua Igreja, não a concebeu nem formou de modo a compreender uma pluralidade de comunidades semelhantes no seu género, embora diferentes, e não ligadas por aqueles vínculos que tornam a Igreja indivisível e única… Por isso, quando Jesus fala deste místico edifício, refere-se apenas a umaIgreja a que chama Sua: edificarei a Minha Igreja (Mat. XVI, 18). Qualquer outra que se imagine fora desta, em virtude de não ter sido fundada por Ele, não pode ser a Sua verdadeira Igreja.

Fé, repito; aumentemos a nossa Fé; pedindo-a à Santíssima Trindade, cuja festa hoje celebramos. Poderá acontecer tudo, excepto que o Deus três vezes Santo abandone a Sua Esposa.

O fim da Igreja

São Paulo, no primeiro capítulo da Epístola aos Efésios, afirma que o mistério de Deus, anunciado por Cristo, se realiza na Igreja. Deus Pai pôs debaixo dos pés de Cristo todas as coisas, e constituiu-O cabeça de toda a Igreja, que é o Seu corpo e o complemento d'Aqueleque cumpre tudo em todos . O mistério de Deus é, uma vez chegada a plenitude dos tempos, restaurar em Cristo todas as coisas, assim as que há no céu, como as que há na terra.

Um mistério insondável, de pura gratuitidade de amor: porque Ele mesmo nos escolheu antes da criação do mundo, por amor, para sermos santos e imaculados diante d'Ele. O amor de Deus não tem limites: o próprio São Paulo anuncia que o Nosso Salvador quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.

Este, e não outro, é o fim da Igreja: a salvação das almas, uma a uma. Para isso o Pai enviou o Filho, e Eu envio-vos também a vós. Daí o mandato de dar a conhecer a doutrina e de baptizar, para que, pela graça, a Santíssima Trindade habite na alma: foi-Me dado todo o poder no Céu e na terra. Ide, pois, ensinai todas as gentes, baptizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei; e eis que Eu estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos.

São as palavras simples e sublimes do final do Evangelho de S. Mateus: aí se assinala a obrigação de pregar as verdades de fé, a urgência da vida sacramental, a promessa da contínua assistência de Cristo à Sua Igreja. Não se é fiel a Nosso Senhor se se passa por cima destas realidades sobrenaturais: a instrução na fé e na moral cristãs, a prática dos sacramentos. Com este mandato Cristo funda a Sua Igreja. Tudo o resto é secundário.

Na Igreja está a nossa salvação

Não podemos esquecer que a Igreja é muito mais do que um caminho de salvação: é o único caminho. Ora isto não foi inventado pelos homens, mas foi Cristo quem assim dispôs: o que crer e for baptizado, será salvo; o que, porém, não crer, será condenado. Por isso se afirma que a Igreja é necessária, com necessidade de meio, para nos salvarmos. Já no século II Orígenes escrevia: se alguém quer salvar-se, venha a esta casa, para que possa consegui-lo… Que ninguém se engane a si mesmo: fora desta casa, isto é, fora da Igreja, ninguém se salva. E S. Cipriano: se alguém tivesse escapado (do dilúvio) fora da arca de Noé, então poderíamos admitir que quem abandona a Igreja pode escapar da condenação.

Extra Ecclesiam, nulla salus. É o aviso contínuo dos Padres: fora da Igreja católica pode encontrar-se tudo - admite Santo Agostinho - menos a salvação. Pode ter-se honra, pode haver Sacramentos, pode cantar-se o "aleluia", pode responder-se "amen", pode defender-se o Evangelho, pode ter-se fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo e, inclusivamente, até pregá-la. Mas nunca, se não for na Igreja católica, pode encontrar-se a salvação.

No entanto, como se lamentava Pio XII há pouco mais de vinte anos, alguns reduzem a uma fórmula vã a necessidade de pertencer à Igreja verdadeira para alcançar a salvação eterna. Este dogma de fé integra a base da actividade corredentora da Igreja, é o fundamento da grave responsabilidade apostólica dos cristãos. Entre os mandatos expressos de Cristo determina-se categoricamente o de nos incorporarmos no Seu Corpo Místico pelo Baptismo. E o nosso Salvador não só promulgou o mandamento de que todos entrassem na Igreja, mas estabeleceu também que a Igreja fosse meio de salvação, sem a qual ninguém pode chegar ao reino da glória celestial.

É de fé que quem não pertence à Igreja não se salva; e que quem se não baptiza não ingressa na Igreja. A justificação, depois da promulgação do Evangelho, não pode verificar-se sem o lavacro da regeneração ou o seu desejo, estabelece o Concilio de Trento.

É esta uma contínua exigência da Igreja que se - por um lado - introduz na nossa alma o aguilhão do zelo apostólico, por outro, manifesta também claramente a misericórdia infinita de Deus para com as criaturas.

S. Tomás explica assim: o Sacramento do baptismo pode faltar de dois modos. Em primeiro lugar, quando não se recebeu nem de facto, nem de desejo. É o caso de quem não se baptizou nem quer baptizar-se. Esta atitude, nos que têm uso da razão, implica desprezo pelo Sacramento. E, em consequência, aqueles a quem falta desta forma o baptismo, não podem entrar no reino dos céus: já que não se incorporam a Cristo nem sacramentalmente nem espiritualmente e unicamente d'Ele é que procede a salvação. Em segundo lugar, pode também faltar o Sacramento do baptismo a uma pessoa, mas não o seu desejo, como no caso daquele que, embora se deseje baptizar, é surpreendido pela morte antes de receber o Sacramento. A quem isto suceder, pode salvar-se sem o baptismo actual e só com o desejo do Sacramento. Este desejo procede da fé que age pela caridade, através da qual Deus, que não ligou o seu poder aos Sacramentos visíveis, santifica interiormente o homem.

Apesar de ser completamente gratuita e de não se dever a ninguém por título algum - e menos ainda depois do pecado-, Deus Nosso Senhor não recusa a ninguém a felicidade eterna e sobrenatural: a Sua generosidade é infinita. É coisa notória que aqueles que sofrem de ignorância invencível acerca da nossa santíssima religião, quando guardam cuidadosamente a lei natural e os seus preceitos, esculpidos por Deus nos corações de todos, e estão dispostos a obedecer a Deus e levam uma vida honesta e recta, podem alcançar a eterna, por intermédio da acção operante da luz divina e da graça. Só Deus sabe o que se passa no coração de cada homem, e Ele não trata as almas em massa, mas uma a uma. Não corresponde a ninguém nesta terra julgar sobre a salvação ou condenação eternas num caso concreto.

Mas não esqueçamos que a consciência pode deformar-se de modo culpável, endurecer-se no pecado e resistir à acção salvadora de Deus. Daí, a necessidade de pregar a doutrina de Cristo, as verdades de fé e as normas morais; e daí também a necessidade dos Sacramentos, todos instituídos por Jesus Cristo como causas instrumentais da Sua graça e remédio para as misérias consequentes ao nosso estado de natureza caída. Daí se deduz também que convém recorrer frequentemente à Penitência e à Comunhão Eucarística.

Fica, portanto, bem concretizada a tremenda responsabilidade de todos na Igreja e especialmente dos pastores com estes conselhos de S. Paulo: Conjuro-te diante de Deus e de Jesus Cristo que há-de julgar os vivos e os mortos, pela Sua vinda e pelo Seu reino: prega a palavra de Deus, insiste a tempo e fora de tempo, repreende, suplica, admoesta com toda a paciência e doutrina. Porque virá tempo em que os homens não suportarão a sã doutrina, mas multiplicarão para si mestres conforme os seus desejos, levados pelo prurido de ouvir doutrinas acomodadas às suas paixões. E afastarão os ouvidos da verdade e os aplicarão às fábulas.

Tempo de provação

Eu não saberia dizer quantas vezes se cumpriram estas palavras proféticas do Apóstolo. Mas só um cego deixaria de ver como actualmente se estão a verificar quase à letra. Rejeita-se a doutrina dos mandamentos da Lei de Deus e da Igreja, tergiversa-se sobre o conteúdo das bem-aventuranças dando-lhe um significado político-social: e quem se esforça por ser humilde, manso e limpo de coração, é tratado como um ignorante ou um atávico defensor de coisas passadas. Não se suporta o jugo da castidade e inventam-se mil maneiras de ludibriar os preceitos divinos de Cristo.

Há um sintoma que os engloba todos: a tentativa de desviar os fins sobrenaturais da Igreja. Por justiça, alguns já não entendem a vida de santidade, mas uma luta política determinada, mais ou menos tingida de marxismo, que é inconciliável com a fé cristã. Por libertação, não admitem a batalha pessoal para fugir do pecado, mas uma tarefa humana, que pode ser nobre e justa em si mesma, mas que carece de sentido para o cristão quando implica a desvirtuação da única coisa necessária, a salvação eterna das almas, uma a uma.

Com uma cegueira originada pelo afastamento de Deus - este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim-, fabrica-se uma imagem da Igreja que não tem a menor relação com a que Cristo fundou. Até o Santo Sacramento do Altar - a renovação do Sacrifício do Calvário - é profanado, ou reduzido a um mero símbolo daquilo a que chamam a comunhão dos homens entre si. Que seria das almas, se Nosso Senhor não se tivesse entregado por nós até à última gota do Seu precioso Sangue! Como é possível que se despreze esse milagre perpétuo da presença real de Cristo no Sacrário? Ficou para que vivamos intimamente com Ele, para que O adoremos, para que nos decidamos a seguir as suas pegadas, como penhor da glória futura.

Estes tempos são tempos de provação e temos de pedir a Nosso Senhor, com um clamor que não cesse, que os abrevie, que olhe com misericórdia para a Sua Igreja e conceda novamente luz sobrenatural às almas dos pastores e às de todos os fiéis. Não há motivo algum que leve a Igreja a empenhar-se em agradar aos homens, porque nunca os homens - nem sós, nem em comunidade - darão a salvação eterna: quem salva é Deus.

Amor filial à Igreja

É indispensável repetir hoje, em voz bem alta, aquelas palavras de S. Pedro perante as pessoas importantes de Jerusalém: este Jesus é aquela pedra que vós rejeitastes ao edificar e que veio para ser a pedra principal do ângulo; fora d'Ele, não se pode procurar a salvação em mais ninguém, porque não foi dado aos homens outro nome sob o céu, pelo qual possamos salvar-nos.

Assim falava o primeiro Papa, a rocha sobre a qual Cristo edificou a Sua Igreja, levado pela sua filial devoção a Nosso Senhor e pela sua solicitude para com o pequeno rebanho que lhe tinha sido confiado. Com Pedro e com os outros Apóstolos, os primeiros cristãos aprenderam a amar profundamente a Igreja.

Viram já, em contrapartida, com que pouca piedade se fala agora, todos os dias, da nossa Santa Madre Igreja? Como é consolador ler, nos Padres antigos, aqueles elogios abrasados de amor à Igreja de Cristo! Amemos o Senhor, Nosso Deus; amemos a Sua Igreja, escreve Santo Agostinho. A Ele como um pai; a Ela como uma mãe. Que ninguém diga: "sim, ainda vou aos ídolos, consulto os possessos e os bruxos, mas não deixo a Igreja de Deus, porque sou católico". Estais unidos à Mãe, mas ofendeis o Pai. Outro diz, pouco mais ou menos assim: "Deus não o permita; não consulto os bruxos, nem interrogo os possessos, não pratico adivinhações sacrílegas, não vou adorar os demónios, não sirvo os deuses de pedra, mas sou do partido de Donato". De que serve não ofender o Pai se Ele vingará a Mãe a quem ofendeis? . E S. Cipriano escrevia brevemente: não pode ter Deus como Pai, quem não tiver a Igreja como Mãe.

Nestes momentos, muitos negam-se a ouvir a verdadeira doutrina sobre a Santa Madre Igreja. Alguns desejam reinventar a instituição, com a ideia louca de implantar no Corpo Místico de Cristo uma democracia ao estilo daquela que se concebe na sociedade civil, ou melhor dito, ao estilo da que se pretende promover: todos iguais em tudo. E não se convencem de que a Igreja está constituída, por instituição divina, pelo Papa, com os bispos, os presbíteros, os diáconos e os leigos. Foi assim que Jesus a quis.

A Igreja é, por vontade divina, uma instituição hierárquica. Sociedade hierarquicamente organizada, assim lhe chama o Concílio Vaticano II, na qual os ministros têm um poder sagrado. A hierarquia não só é compatível com a liberdade, mas está também ao serviço da liberdade dos filhos de Deus.

O termo democracia não tem sentido na Igreja que - insisto - é hierárquica por vontade divina. No entanto, hierarquia significa governo santo e ordem sagrada, e de modo algum arbitrariedade humana ou despotismo infra-humano. Nosso Senhor dispôs que existisse na Igreja uma ordem hierárquica, que não há-de transformar-se em tirania, porque a própria autoridade, bem como a obediência, é um serviço.

Na Igreja há igualdade: uma vez baptizados, somos todos iguais, porque somos filhos do mesmo Deus, Nosso Pai. Como cristãos, não há qualquer diferença entre o Papa e a última pessoa a incorporar-se na Igreja. Mas esta igualdade radical não implica a possibilidade de mudar a constituição da Igreja, naquilo que foi estabelecido por Cristo. Por expressa vontade divina temos uma diversidade de funções, que comporta também uma capacidade diversa, um carácter indelével conferido pelo Sacramento da Ordem para os ministros sagrados. No vértice dessa ordenação está o sucessor de Pedro e, com ele, e sob ele, todos os bispos: com a sua tríplice missão de santificar, de governar e de ensinar.

Permitam-me que insista repetidamente: as verdades de fé e de moral não se determinam por maioria de votos, porque compõem o depósito - depositum fidei - entregue por Cristo a todos os fiéis e confiado, na sua exposição e ensino autorizado, ao Magistério da Igreja.

Seria um erro pensar que, pelo facto de os homens já terem talvez adquirido mais consciência dos laços de solidariedade que mutuamente os unem, se deva modificar a constituição da Igreja, para a pôr de acordo com os tempos. Os tempos não são dos homens, quer sejam ou não eclesiásticos; os tempos são de Deus, que é o Senhor da história. E a Igreja só poderá proporcionar a salvação às almas, se permanecer fiel a Cristo na sua constituição, nos seus dogmas, na sua moral.

Rejeitemos, portanto, o pensamento de que a Igreja - esquecendo-se do sermão da montanha - procura a felicidade humana na terra, pois sabemos que a sua única tarefa consiste em levar as almas à glória eterna do paraíso; rejeitemos qualquer solução naturalista, que não valorize o papel primordial da graça divina; rejeitemos as opiniões materialistas, que procuram tirar importância aos valores espirituais na vida do homem; rejeitemos de igual modo as teorias secularizantes, que pretendem identificar os fins da Igreja de Deus com os dos estados terrenos: confundindo a essência, as instituições, a actividade, com características similares às da sociedade temporal.

O abismo da sabedoria de Deus

Recordem as considerações de São Paulo que acabamos de ler na Epístola: Ó profundidade das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus; quão incompreensíveis são os Seus juízos, e inesgotáveis os Seus caminhos! Porque, quem conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem foi o Seu conselheiro? Ou quem Lhe deu alguma coisa primeiro, para que tenha de receber em troca? Todas as coisas são d'Ele e todas são por Ele, e todas existem n'Ele; a Ele seja dada glória por todos os séculos dos séculos. Amen. À luz da palavra de Deus, como se tornam tacanhos os desígnios humanos ao procurarem alterar o que Nosso Senhor estabeleceu!

Não devo, porém, ocultar-vos que agora se observa, por todo o lado, uma estranha capacidade do homem: nada conseguindo contra Deus, enfurece-se contra os outros sendo tremendo instrumento do mal, ocasião e indutor de pecado, semeador dum tipo de confusão que conduz a que se cometam acções intrinsecamente más, apresentando-as como boas.

Sempre houve ignorância: mas, hoje em dia, a ignorância mais brutal em matérias de fé e de moral disfarça-se, por vezes, com nomes pomposos aparentemente teológicos. Por isso, o mandato de Cristo aos Apóstolos - acabamos de ouvi-lo no Evangelho - alcança uma premente actualidade: ide, pois, ensinai todas as gentes. Não podemos desinteressar-nos, não podemos cruzar os braços, não podemos fechar-nos sobre nós mesmos. Acorramos a travar, por Deus, uma grande batalha de paz, de serenidade, de doutrina.

Temos de ser compreensivos, cobrir tudo com o manto afectuoso da caridade. Uma caridade que nos confirme na fé, aumente a nossa esperança e nos faça fortes, para dizer bem alto que a Igreja não é essa imagem que alguns propõem. A Igreja é de Deus, e pretende um único fim: a salvação das almas. Aproximemo-nos de Nosso Senhor, falemos com Ele na oração face a face, peçamos-Lhe perdão pelas nossas misérias pessoais e reparemos pelos nossos pecados e pelos dos outros homens que - neste clima de confusão - talvez não consigam descobrir a gravidade com que estão a ofender a Deus.

Na Santa Missa, neste Domingo, na renovação incruenta do sacrifício cruento do Calvário, Jesus imolar-Se-á - Sacerdote e Vítima - pelos pecados dos homens. Não O deixemos só, que surja no nosso peito um desejo ardente de estar com Ele, ao pé da Cruz; que aumente o nosso clamor ao Pai, Deus misericordioso, para que volte a dar a paz ao mundo, a paz à Igreja, a paz às consciências!

Se nos comportarmos assim, encontraremos - ao pé da Cruz - Maria Santíssima, Mãe de Deus e nossa Mãe. Pela sua mão bendita, chegaremos a Jesus e, por Ele, ao Pai, no Espírito Santo.

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