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Há 6 pontos em «Cristo que Passa» cujo tema é Mundo → santificação do mundo.

Apostolado, corredenção

Com a maravilhosa normalidade do divino, a alma contemplativa derrama-se em afã apostólico: ardia-me o coração dentro do peito, ateava-se o fogo na minha meditação. Que fogo é esse senão aquele de que fala Cristo: Vim trazer fogo (do amor divino) à Terra: e que quero eu senão que se acenda?. Fogo de apostolado que se robustece na oração: não há meio melhor do que este para desenvolver através de todo o mundo, essa batalha pacífica em que cada cristão está chamado a participar: cumprir o que resta padecer a Cristo.

Jesus subiu aos céus, dizíamos. Mas o cristão pode, na oração e na Eucaristia, conviver com Ele nos mesmos moldes dos primeiros doze, abrasar-se no seu zelo apostólico, para com Ele fazer um serviço de corredenção, que é semear a paz e a alegria. Servir, pois o apostolado não é outra coisa. Se contarmos exclusivamente com as nossas próprias forças, nada conseguiremos no terreno sobrenatural; sendo instrumentos de Deus, conseguiremos tudo: tudo posso n'Aquele que me conforta. Deus, pela, sua infinita bondade, dispôs-Se a utilizar estes instrumentos ineptos. Daí que o Apóstolo não tenha outro fim senão deixar agir o Senhor, mostrar-se inteiramente disponível, para que Deus realize - através das suas criaturas, através da alma escolhida - a sua obra salvadora.

Apóstolo é o cristão que se sente inserido em Cristo, identificado com Cristo, pelo Baptismo; habilitado a lutar por Cristo pela Confirmação; chamado a servir a Deus com a sua acção no mundo, pelo sacerdócio comum dos fiéis, que confere uma certa participação no sacerdócio de Cristo, a qual - sendo essencialmente diferente da que constitui o sacerdócio ministerial - o torna capaz de tomar parte no culto da Igreja e de ajudar os homens no seu caminho para Deus, com o testemunho da palavra e do exemplo, com a oração e a expiação.

Cada um de nós há-de ser ipse Christus, o próprio Cristo. Eleé o único mediador entre Deus e os homens; e nós unimo-nos a Ele para oferecer, com Ele, todas as. coisas ao Pai. A nossa vocação de filhos de Deus, no meio do mundo, exige-nos que não procuremos apenas a nossa santidade pessoal, mas que vamos pelos caminhos da terra, para convertê-los em atalhos que, através dos obstáculos, levem as almas ao Senhor; que participemos, como cidadãos normais e correntes, em todas as actividades temporais, para sermos levedura que há-de informar toda a massa.

Cristo subiu aos céus, mas transmitiu a tudo o que é honestamente humano a possibilidade concreta de ser redimido. São Gregório Magno trata este grande tema cristão com palavras incisivas: Partia assim Jesus para o lugar de onde era e voltava do lugar em que continuava a morar. Efectivamente, no momento em que subia ao Céu, unia com a sua divindade o Céu e a Terra. Na festa de hoje convém destacar solenemente o facto de que tenha sido suprimido o decreto que nos condenava, o juízo que nos tornava sujeitos à corrupção. A natureza a que se dirigiam as palavras "tu és pó e em pó te hás-de tornar" (Gen. 3, 19), essa mesma natureza subiu hoje ao Céu com Cristo.

Não me cansarei de repetir, portanto, que o mundo é santificável e que a nós, cristãos, nos toca especialmente essa tarefa, purificando-o das ocasiões de pecado com que os homens o tornam feio e oferecendo-o ao Senhor como Hóstia espiritual, apresentada e dignificada com a graça de Deus e o nosso esforço. Em rigor, não se pode dizer que haja nobres realidades exclusivamente profanas, uma vez que o Verbo se dignou assumir uma natureza humana íntegra e consagrar a Terra com a sua presença e com o trabalho das suas mãos. A grande missão que recebemos, no Baptismo, é a corredenção. Urge-nos a caridade de Cristo para tomarmos sobre os nossos ombros uma parte dessa tarefa divina de resgatar as almas.

Se não aprendermos com Jesus, nunca amaremos. Se pensássemos, como alguns pensam, que conservar um coração limpo, digno de Deus, significa não o misturar, não o contaminar com afectos humanos, o resultado lógico seria tomarmo-nos insensíveis à dor dos outros. Só seríamos capazes de uma caridade oficial, seca e sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo, que é ternura, amor humano. Mas com isto não estou a justificar certas teorias com que se pretende desculpar o desvio dos corações, afastando-os de Deus e levando-os a más ocasiões e à perdição.

Na festa de hoje, havemos de pedir ao Senhor que nos dê um coração bom, capaz de se compadecer das penas das criaturas, capaz de compreender que, para remediar os tormentos que acompanham e tanto angustiam as almas neste mundo, o verdadeiro bálsamo é o amor, a caridade; todas as outras consolações só servem para nos distrair por um momento e deixar depois amargura e desespero.

Se queremos ajudar os outros, temos de os amar - deixai-me insistir - com um amor que seja compreensão e entrega, afecto e humildade voluntária. Assim compreenderemos por que quis o Senhor resumir toda a Lei nesse duplo mandamento, que é afinal um mandamento só: o amor de Deus e o amor do próximo, com todo o coração.

Talvez estejais a pensar que, por vezes, nós, cristãos - não os outros: tu e eu - nos esquecemos das aplicações mais elementares deste dever. Talvez penseis em tantas injustiças a que se não dá remédio, em abusos que não se corrigem, em situações de discriminação que se transmitem de geração em geração, sem se procurar uma solução de raiz.

Não posso, nem isso me compete, propor-vos a forma concreta de resolver esses problemas. Mas, como sacerdote de Cristo, é meu dever recordar-vos o que a Sagrada Escritura diz. Meditai na cena do Juízo, que o próprio Jesus descreveu: afastai-vos de Mim, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o Diabo e os seus anjos. Porque tive fome e não Me destes de comer; tive sede e não Me destes de beber; fui peregrino e não Me recebestes; nu, e não Me cobristes; enfermo e encarcerado, e não Me visitastes.

Um homem ou uma sociedade que não reaja diante das tribulações ou das injustiças e se não esforce por as aliviar, não é um homem ou uma sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos - conservando sempre a mais ampla liberdade quando se trata de estudar e de pôr em prática as diversas soluções, segundo um pluralismo bem natural - terão de convergir no mesmo anseio de servir a humanidade. Se não, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um embuste feito a Deus e aos homens.

A paz de Cristo

Tenho ainda a propor-vos uma outra consideração: devemos lutar sem descanso por fazer o bem, precisamente por sabermos que nos é difícil, a nós, homens, decidirmo-nos a sério a exercer a justiça, e é muito o que falta para que a convivência terrena esteja inspirada pelo amor e não pelo ódio ou pela indiferença. Não esqueçamos também que, mesmo que consigamos atingir um estado razoável de distribuição dos bens e uma harmoniosa organização da sociedade, não há-de desaparecer a dor da doença, da incompreensão ou da solidão, a dor da experiência dos nossas próprias limitações.

Em face dessas penas, o cristão só tem uma resposta autêntica, uma resposta definitiva: Cristo na Cruz, Deus que sofre e que morre, Deus que nos entrega o seu Coração, aberto por uma lança, por amor a todos. Nosso Senhor abomina as injustiças e condena quem as comete. Mas, como respeita a liberdade das pessoas, permite que existam. Deus Nosso Senhor não causa a dor das criaturas, mas tolera-a como parte que é - depois do pecado original - da condição humana. E, no entanto, o seu Coração, cheio de amor pelos homens, levou-O a tomar sobre os seus ombros, juntamente com a Cruz, todas essas torturas: o nosso sofrimento, a nossa tristeza, a nossa angústia, a nossa fome e sede de justiça.

A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de fáceis consolações. Começa logo por ser uma doutrina de aceitação do sofrimento, inseparável de toda a vida humana. Não vos posso esconder - e com alegria pois sempre preguei e procurei viver a verdade de que, onde está a Cruz está Cristo, o Amor - que a dor apareceu muitas vezes na minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar. Noutras ocasiões, senti crescer em mim o desgosto pela injustiça e pelo mal. E soube o que era a mágoa de ver que nada podia fazer, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia melhorar aquelas situações iníquas.

Quando vos falo de dor, não vos falo apenas de teorias. Nem me limito a recolher uma experiência de outros, quando vos confirmo que, se sentis, diante da realidade do sofrimento, que a vossa alma vacila algumas vezes, o remédio que tendes é olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições hão-de ser santificadas, se vivermos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por amor aos homens, toda a espécie de dores, todo o género de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda agora, Cristo continua a sofrer nos seus membros, na Humanidade inteira que povoa a Terra e da qual Ele é Cabeça e Primogénito e Redentor.

A dor entra nos planos de Deus. Ainda que nos entendê-la, é esta a realidade. Também Jesus, como homem, teve dificuldade em admiti-la: Pai, se é possível, afasta de Mim este cálice! Não se faça, porém, a minha vontade, mas a tua! . Nesta tensão entre o sofrimento e a aceitação da vontade do Pai, Jesus vai serenamente para a morte, perdoando aos que O crucificaram.

Ora, esta aceitação sobrenatural da dor pressupõe, por outro lado, a maior conquista. Jesus, morrendo na Cruz, venceu a morte. Deus tira da morte a vida. A atitude de um filho de Deus não é a de quem se resigna à sua trágica desventura; é, sim, a satisfação de quem já antegoza a vitória. Em nome desse amor vitorioso de Cristo, nós, os cristãos, devemos lançar-nos por todos os caminhos da Terra, para sermos semeadores de paz e de alegria, com a nossa palavra e nossas obras. Temos de lutar - é uma luta de paz - contra o mal, contra a injustiça, contra o pecado, para proclamarmos assim que a actual condição humana não é a definitiva; o amor de Deus, manifestado no Coração de Cristo, conseguirá o glorioso triunfo espiritual dos homens.

*Homilia pronunciada no dia 22 de Novembro de 1970, Festa de Cristo rei

Acaba o ano litúrgico e no Santo Sacrifício do Altar renovamos ao Pai o oferecimento da Vitima, Cristo, Rei de santidade e de graça, rei de justiça, de amor e de paz, como leremos dentro de pouco tempo no Prefácio. Todos sentis nas vossas almas uma alegria imensa, ao considerar a santa Humanidade de Nosso Senhor, por saberdes que se trata dum Rei com um coração de carnecomo o nosso, que é o autor do universo e de todas as criaturas e que não se impõe pelo domínio, mas mendigando um pouco de amor, ao mesmo tempo que nos mostra, em silêncio, as suas mãos chagadas.

Como é possível, então, que tantos O ignorem? Porque se ouve ainda esse protesto cruel: nolumus hunc regnare super nos, não queremos que este reine sobre nós? Na terra há milhões de homens que se enfrentam assim com Jesus Cristo, ou melhor, com a sombra de Jesus Cristo, porque não O conhecem, nem viram a beleza do seu rosto, nem se aperceberam da maravilha da sua doutrina.

Diante deste triste espectáculo, sinto-me movido a desagravar o Senhor. Ao ouvir o clamor que não cessa e que se constrói mais com obras pouco nobres do que com palavras, sinto a necessidade de gritar bem alto: oportet illum regnare!, convém que Ele reine.

Oposição a Cristo

Muitos não suportam que Cristo reine. Opõem-se-lhe de mil maneiras, quer nos planos gerais de governo do mundo e da convivência humana, quer nos costumes, quer na arte ou na ciência. Até na própria Igreja! Eu não falo - escreve Santo Agostinho - dos malvados que blasfemam de Cristo. São raros, efectivamente, os que O blasfemam com a língua, mas são muitos os que O blasfemam com a própria conduta.

Para alguns é molesta a própria expressão Cristo Rei, talvez por uma superficial questão de palavras como se o reinado de Cristo pudesse confundir-se com fórmulas políticas, ou porque a confissão da realeza do Senhor os levaria a admitir uma lei. E não toleram a lei, mesmo a do amável preceito da caridade, visto que não querem aproximar-se do amor de Deus. São os que só ambicionam servir o seu próprio egoísmo.

O Senhor levou-me a repetir, desde há muito tempo, um grito calado: serviam!, servirei. Que Ele nos aumente essas ânsias de entrega, de fidelidade ao seu chamamento divino - com naturalidade, sem aparato, sem barulho - no meio da rua. Demos-lhe graças do fundo do coração. Dirijamos-lhe uma oração de súbditos, de filhos! - e a língua e o paladar encher-se-nos-ão de doçura com tal intensidade, que tratar do Reino de Deus nos saberá como a favo de mel, porque se trata dum Reino de liberdade, da liberdade que Ele ganhou para nós.

Cristo, Senhor do mundo

Gostaria de considerar convosco como esses Cristo, que - terna criança - vimos nascer em Belém, é o Senhor do mundo. Eis as razões: por Ele foram criados todos os seres nos céus e na Terra; Ele reconciliou com o Pai todas as coisas, restabelecendo a paz entre o Céu e a Terra, por meio do sangue que derramou na Cruz. Hoje Cristo reina, à direita do Pai; aqueles dois anjos de vestes brancas declararam aos discípulos que, atónitos, estavam a contemplar as nuvens, depois da Ascensão do Senhor: Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o Céu? Esse Jesus, que vos foi arrebatado para o Céu, virá da mesma maneira, como agora O vistes partir para o Céu.

Por Ele reinam os reis, com a diferença de que os reis, as autoridades humanas, passam e o reino de Cristo permanecerá por toda a eternidade, o seu reino é um reino eterno e o seu domínio perdurará de geração em geração.

O reino de Cristo não é um modo de dizer, nem uma imagem de retórica. Cristo vive, também como homem, com aquele mesmo corpo que assumiu na Encarnação, que ressuscitou depois da Cruz e subsiste glorificado na Pessoa do Verbo juntamente com a sua alma humana. Cristo, Deus e Homem verdadeiro, vive e reina e é o Senhor do mundo. Só por Ele se mantém na vida tudo o que vive.

Mas então porque é que não aparece agora em toda a sua glória? Porque o seu reino não é deste mundo, ainda que esteja no mundo. Replicou Jesus a Pilatos: Eu sou Rei! Para isto nasci, e para isso vim ao mundo, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. Aqueles que esperavam do Messias um poderio temporal visível, enganavam-se: porque o Reino de Deus não consiste em comer e beber, mas em paz, justiça e alegria no Espírito Santo.

Verdade e justiça, paz e júbilo no Espírito Santo. Esse é o reino de Cristo. A acção divina que salva os homens culminará com o fim da história, quando o Senhor, que Se senta no mais alto do paraíso, vier julgar definitivamente os homens.

Quando Cristo inicia a sua pregação na Terra, não oferece um programa político, mas diz: fazei penitência, porque está perto o reino dos Céus. Encarrega os seus discípulos de anunciar esta boa nova e ensina a pedir, na oração, a chegada do reino, isto é o reino dos Céus e a sua justiça, uma vida santa, aquilo que temos de procurar em primeiro lugar,a única coisa verdadeiramente necessária.

A salvação pregada por Nosso Senhor Jesus Cristo é um convite dirigido a todos: o reino dos céus é semelhante a um rei, que fez as núpcias de seu filho. E mandou os seus servos chamar convidados para as núpcias. Por isso, o Senhor revela que o reino dos Céus está no meio de vós.

Ninguém se encontra excluído da salvação se adere livremente às exigências amorosas de Cristo: nascer de novo fazer-se como menino, na simplicidade de espírito; afastar o coração de tudo aquilo que aparte de Deus. Jesus quer factos; não só palavras; e um esforço, denodado, porque apenas aqueles que lutam serão merecedores da herança eterna.

A perfeição do reino - o juízo definitivo de salvação ou de condenação - não se dará na Terra. Agora o reino é como uma semente, como o crescimento do grão de mostarda. O seu fim será como a rede que apanhava toda a espécie de peixes, donde - depois de trazida para a areia - serão extraídos, para destinos diferentes, os que praticaram a justiça e os que fizeram a iniquidade. Mas, enquanto aqui vivemos, o reino assemelha-se à levedura que uma mulher tomou e misturou com três medidas de farinha, até que toda a massa ficou fermentada.

Quem compreender o reino que Cristo propõe, reconhece que vale a pena jogar tudo para o conseguir: é a pérola que o mercador adquire à custa de vender tudo o que possui, é o tesoiro encontrado no campo. O reino dos céus é uma conquista difícil e ninguém tem a certeza de o alcançar, embora o clamor humilde do homem arrependido consiga que se abram as suas portas de par em par. Um dos ladrões que foram crucificados com Jesus suplica-Lhe: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. E Jesus disse-lhe: Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no paraíso.

A liberdade pessoal

O cristão, quando trabalha, como é sua obrigação, não deve marginar nem iludir as exigências próprias do que é natural. Se com a expressão abençoar as actividades humanas se entendesse anular ou escamotear a sua dinâmica própria, negar-me-ia a usar essas palavras. Pessoalmente, nunca me consegui convencer que as actividades correntes dos homens precisassem de ostentar, como um letreiro postiço, um qualificativo confessional, porque me parece, embora respeite a opinião contrária, que se corre o perigo de usar em vão o santo nome da nossa fé e, além disso, porque em certas ocasiões, a etiqueta católica se utilizou até para justificar atitudes e actuações que não são às vezes sequer honradamente humanas.

Se o mundo e tudo o que nele há - menos o pecado - é bom, porque é obra de Deus Nosso Senhor, o cristão, lutando continuamente por evitar as ofensas a Deus - uma luta positiva de amor - há-de dedicar-se a tudo aquilo que é terreno, ombro a ombro com os outros cidadãos, e tem obrigação de defender todos os bens derivados da dignidade da pessoa.

Existe um bem que deverá sempre procurar dum modo especial - o da liberdade pessoal. Só se defende a liberdade individual dos outros com a correspondente responsabilidade pessoal, poderá, com honradez humana e cristã, defender da mesma maneira a sua. Repito e repetirei sem cessar que o Senhor nos deu gratuitamente uma grande dádiva sobrenatural, a graça divina, e outra maravilhosa dádiva humana, a liberdade pessoal, que exige de nós - para que não se corrompa, convertendo-se em libertinagem - integridade, empenho sério por desenvolver a nossa conduta dentro da lei divina, porque onde está o Espírito de Deus, aí há liberdade.

O Reino de Cristo é de liberdade: nele não existem outros servos além daqueles que livremente se deixaram prender por Amor a Deus. Bendita escravidão de amor, que nos faz livres! Sem liberdade, não podemos corresponder à graça; sem liberdade, não podemos entregar-nos livremente ao Senhor pela razão mais sobrenatural: porque nos apetece.

Alguns daqueles que me escutam já me conhecem há muitos anos. Podeis testemunhar que durante toda a minha vida preguei a liberdade pessoal, com pessoal responsabilidade. Procurei-a e procuro-a, por toda a terra, como Diógenes procurava um homem. E amo-a cada vez mais, amo-a sobre todas as coisas terrenas: é um tesoiro que nunca saberemos apreciar suficientemente.

Quando falo de liberdade pessoal, não me refiro com esta desculpa a outros problemas talvez muito legítimos, que não correspondem ao meu ofício de sacerdote. Sei que não me corresponde tratar de temas seculares e transitórios, que pertencem à esfera do temporal e civil, matérias que o Senhor deixou à livre e serena controvérsia dos homens. Sei também que os lábios do sacerdote, evitando a todo o transe parcialidades humanas, hão-de abrir-se apenas para conduzir as almas a Deus, à sua doutrina espiritual salvadora, aos sacramentos que Jesus Cristo instituiu, à vida interior que nos aproxima do Senhor por nos sabermos seus filhos e, portanto, irmãos de todos os homens sem excepção.

Celebramos hoje a festa de Cristo Rei. E não saio do meu ofício de sacerdote quando digo que, se alguma pessoa entendesse o reino de Cristo como um programa político, não teria aprofundado como devia na finalidade da Fé e estaria a um passo de sobrecarregar as consciências com pesos que não são os de Jesus porque o seu jugo é suave e o seu peso é leve. Amemos de verdade todos os homens, amemos a Cristo acima de tudo e então não teremos outro remédio senão amar a legítima liberdade dos outros, numa pacífica e justa convivência.