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Há 3 pontos em «Cristo que Passa» cujo tema é Entrega → generosidade.

*Homilia pronunciada no dia 2 de Dezembro de 1951, 1º Domingo do Advento

Começa o ano litúrgico e o intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos. Vias tuas, Domine, demonstra mihi et semitas tuas edoce me, mostra-me Senhor os teus caminhos e ensina-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que no guie, que nos deixe ver os seus passos, para que possamos aspirar à plenitude dos seus mandamentos que é a caridade.

Julgo que vós, tal como eu, ao pensar nas circunstâncias que acompanharam a vossa decisão de vos esforçardes por viver integralmente a fé, dareis muitas graças ao Senhor e tereis a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não há mérito algum da vossa parte. Geralmente, aprendemos a invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos. Mais adiante, professores, companheiros e simples conhecidos ajudaram-nos de muitas maneiras a não perder de vista Jesus Cristo.

Um dia (não quero generalizar; abre o coração ao Senhor e conta-lhe tu a história) talvez um amigo, um cristão normal e corrente como tu, te tenha feito descobrir um panorama profundo e novo e ao mesmo tempo tão antigo como o Evangelho. Sugeriu-te a possibilidade de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas perdido então a tranquilidade e não a terás recuperado, convertida em paz, até que, livremente, "porque muito bem te apeteceu" - que é a razão mais sobrenatural - respondeste a Deus que sim. E veio a alegria, vigorosa, constante, que só desaparece quando te afastas d'Ele.

Não me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala disso, quem escolhe. É a linguagem da escritura: elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz S. Paulo - ut essemus sancti, escolheu-nos antes da criação do mundo para sermos santos. Eu sei que isto não te enche de orgulho, nem contribui para que te consideres superior aos outros homens. Essa escolha, raiz do teu chamamento, deve ser a base da tua humildade. Costuma levantar-se porventura algum monumento aos pincéis dum grande pintor? Serviram para fazer obras-primas mas o mérito é do artista. Nós - os cristãos - somos apenas instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.

As tentações de Cristo

A Quaresma comemora os quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação para os anos de pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa. Quarenta dias de oração e de penitência, no fim dos quais teve lugar o episódio que a liturgia de hoje oferece à nossa consideração no Evangelho da Missa: as tentações de Cristo.

É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão pretende entender - Deus que Se submete à tentação, que deixa actuar o Maligno… - mas que pode ser meditada, pedindo ao Senhor que nos faça compreender a lição nela contida.

Jesus Cristo tentado! A Tradição esclarece este episódio considerando que Nosso Senhor quis sofrer a tentação para nos dar exemplo em tudo. Assim é, porque Cristo foi perfeito homem, igual a nós, salvo no pecado. Após quarenta dias de jejum, com o simples alimento, possivelmente, de ervas e de raízes e de um pouco de água, Jesus sente fome - fome autêntica, como a de qualquer criatura. E quando o Demónio lhe propõe que transforme em pão as pedras, Nosso Senhor não só rejeita o alimento que o corpo lhe pedia, mas afasta de Si uma incitação maior: a de usar o poder divino para remediar, digamos assim, um problema pessoal.

Tereis notado isso ao longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em proveito próprio. Converte a água em vinho para os noivos de Caná; multiplica os pães e os peixes para dar de comer a uma multidão faminta; mas Ele ganha o seu pão, durante muitos anos, com o seu próprio trabalho. E mais tarde, durante o tempo em que peregrina por terras de Israel, vive com a ajuda daqueles que O seguem

Relata S. João que, depois de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, manda os seus discípulos à cidade para comprarem alimentos; e ao ver aproximar-se a Samaritana pede-lhe água, porque Ele não tinha com que tirá-la. O seu corpo fatigado pela longa caminhada sofre o cansaço e, outras vezes, para refazer energias, recorre ao sono. Generosidade do Senhor que Se humilhou, que aceitou plenamente a condição humana, que não Se serve do seu poder divino para fugir das dificuldades ou do esforço! E assim nos ensina a ser fortes, a amar o trabalho, a nobreza humana e divina de saborear as consequências da entrega, da doação.

Na segunda investida, quando o Demónio Lhe propõe que Se lance do pináculo do Templo, Jesus rejeita de novo a tentação de querer servir-Se do seu poder divino. Cristo não busca a vangloria, o aparato, a comédia humana que procura utilizar Deus como pano de fundo da nossa própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a vontade do Pai sem adiantar os tempos nem antecipar a hora dos milagres, percorrendo passo a passo a dura senda dos homens, o amável caminho da cruz.

Algo muito parecido vemos na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder, glória. O Demónio pretende estender a ambições humanas uma atitude que se deve reservar só a Deus: promete uma vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante dos ídolos. Nosso Senhor reconduz a adoração ao seu único e verdadeiro fim - Deus - e reafirma a sua vontade de servir: Afasta-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás

Ser Apóstolo de Apóstolos

Encher de luz o mundo, ser sol e luz - assim definiu o Senhor a missão dos seus discípulos. Levar até aos confins da Terra a boa nova do amor de Deus - a isso devem dedicar a vida, de um modo ou doutro, todos os cristãos.

Direi mais: temos de sentir o desejo de não estar sós; temos de animar outros a contribuírem para essa missão divina de levar a alegria e a paz aos corações dos homens. À medida que progredis, atraí a vós os outros - escreve S. Gregório Magno. Desejai ter companheiros no caminho para o Senhor.

Mas lembrai-vos de que, cum dormirem homines, enquanto os homens dormiam, veio o semeador do joio, diz o Senhor numa parábola. Nós, os homens, estamos expostos a deixar-nos levar pelo sono do egoísmo, da superficialidade, desperdiçando o coração em mil experiências passageiras, evitando aprofundar o verdadeiro sentido das realidades terrenas. Triste coisa é esse sono, que sufoca a dignidade do homem e o torna escravo da tristeza!

Há um caso que nos deve doer sobremaneira: o daqueles cristãos que podiam dar mais e não se decidem; que podiam entregar-se totalmente vivendo todas as consequências da sua vocação de filhos de Deus, mas resistem a ser generosos. Deve-nos doer, porque a graça da Fé não se nos dá para ficar oculta, mas para brilhar diante dos homens; porque, além disso, está emjogo a felicidade temporal e eterna dos que procedem assim. A vida cristã é uma maravilha divina, com promessa de imediata satisfação e serenidade, mas com a condição de sabermos apreciar o dom de Deus, sendo generosos sem medida.

É necessário, portanto, despertar os que tenham caído nesse mau sono, recordar-lhes que a vida não é um divertimento, mas um tesouro divino que há que fazer frutificar. É necessário também ensinar o caminho aos que têm boa vontade e bons desejos mas não sabem como pô-los em prática. Cristo urge-nos. Cada um de vós há-de ser, não só apóstolo, mas apóstolo de apóstolos, arrastando outros convosco, movendo os demais para que também eles dêem a conhecer Jesus Cristo.