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Há 5 pontos em «Cristo que Passa» cujo tema é Caridade → correspondência ao amor de Deus.

Ouro, incenso e mirra

Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde” - diz o texto latino com admirável reiteração: ao descobrir novamente a estrela, exultaram com grande alegria. E porquê tanta alegria? Porque eles, que nunca duvidaram, recebem do Senhor a prova de que a estrela não tinha desaparecido; deixaram de a ver sensivelmente mas tinham-na conservado sempre na alma. Assim é a vocação cristã: se não se perde a fé, se se mantém a esperança em Jesus Cristo que estará connosco até à consumação dos séculos, a estrela reaparece. E, ao verificar uma vez mais a realidade da vocação, nasce em nós uma alegria maior, que aumenta a nossa fé, a nossa esperança, o nosso amor.

Ao entrarem na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, pondo-se de joelhos, adoraram-no. Ajoelhemo-nos nós também diante de Jesus, do Deus escondido na humanidade; repitamos-lhe que não queremos voltar as costas ao seu chamamento divino, que nunca nos afastaremos dele; que arredaremos do nosso caminho tudo o que for um estorvo para a fidelidade; que desejamos sinceramente ser dóceis às suas inspirações. Tu, interiormente, e eu também - porque estou a fazer uma oração íntima, com um profundo clamor silencioso - dizemos agora ao Menino que ansiamos por ser tão cumpridores como os servos da parábola, para que também nos possa responder a nós: alegra-te servo bom o fiel.

E, abrindo os seus tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra. Detenhamo-nos um pouco para entender este passo do Santo Evangelho. Como é possível que nós, que nada somos e nada valemos, ofereçamos alguma coisa a Deus? Diz a Escritura: toda a dádiva e todo o dom perfeito vem do alto. O homem não consegue descobrir plenamente a profundidade e a beleza dos dons do Senhor: se tu conhecesses o dom de Deus… - responde Jesus à mulher samaritana. Jesus Cristo ensinou-nos a esperar tudo do Pai, a procurar antes de mais o Reino de Deus e a sua justiça, porque tudo o resto se nos dará por acréscimo e Ele conhece bem as nossas necessidades. Na economia da salvação, o nosso Pai cuida de cada alma com amor e delicadeza: cada um recebeu de Deus o seu próprio dom; uns de um modo, outros de outro. Portanto, podia parecer inútil cansarmo-nos, tentando apresentar ao Senhor algo de que Ele precise; dada a nossa situação de devedores que não têm com que saldar as dívidas, as nossas ofertas assemelhar-se-iam às da Antiga Lei, que Deus já não aceita: Tu não quiseste os sacrifícios, as oblações e os holocaustos pelo pecado, nem te são agradáveis as coisas que se oferecem segundo a Lei.

Mas o Senhor sabe que o dar é próprio dos apaixonados e Ele próprio nos diz o que deseja de nós. Não lhe interessam riquezas, nem frutos, nem animais da terra, do mar ou do ar, porque tudo isso lhe pertence. Quer algo de íntimo, que havemos de lhe entregar com liberdade: dá-me, meu filho, o teu coração. Vedes? Se compartilha, não fica satisfeito: quer tudo para si. Repito: não pretende o que é nosso; quer-nos a nós mesmos. Daí - e só daí - advêm todas as outras ofertas que podemos fazer ao Senhor.

Demos-lhe, portanto, ouro: o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e dos bens materiais. Não esqueçamos que são coisas boas, que vêm de Deus. Mas o Senhor dispôs que as utilizemos sem deixar que o coração fique preso a elas, pelo contrário, tirando delas proveito para bem da humanidade.

Os bens da terra não são maus; pervertem-se quando o homem os toma como ídolos e se prostra diante deles; mas tornam-se nobres quando os tornamos instrumentos para o bem nalguma actividade cristã de justiça e de caridade. Não podemos correr atrás dos bens económicos, como quem procura um tesouro; o nosso tesouro está aqui, deitado num presépio; é Cristo e nele se há-de concentrar todo o nosso amor, porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.

Após este protesto de amor, é necessário comportarmo-nos como amigos de Deus. In omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros; comportemo-nos em tudo como servidores do Senhor. Se te dás como Ele quer, a acção divina manifestar-se-á na tua conduta profissional, no trabalho, num empenho por fazer divinamente as coisas humanas, grandes ou pequenas, pois pelo Amor todas adquirem uma nova dimensão.

Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidores de Deus não é fácil. Continuemos a seguir o texto de S. Paulo que a Epístola deste Domingo recolhe, para recordarmos as dificuldades: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo - com muita paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nos cárceres, nas sedições, no trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus.

Nos mais diferentes momentos da vida, em todas as situações., havemos de comportarmo-nos como servidores de Deus, sabendo que oSenhor está connosco, que somos seus filhos. É preciso sermos conscientes dessa raiz divina, que está enxertada na nossa vida, e actuar em conformidade.

Estas palavras do Apóstolo deve encher-vos de alegria, porque são como que uma canonização da vossa vocação de cristãos correntes, vivendo no meio do mundo, compartilhando com os demais homens, vossos iguais, ideais, trabalhos e alegrias. Tudo isso é caminho divino. O que oSenhor vos pede é que a todo o momento actueis como filhos e servidores seus.

Mas estas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se realmente nos convertermos, se nos entregarmos. S. Paulo, na verdade, usa uma linguagem dura. Promete ao cristão uma vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se tem desfigurado o Cristianismo quando se tem pretendido fazer dele um caminho cómodo! Mas também é uma desfiguração da verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústia, de opressão ou de medo.

O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a generosidade e a tendência para o egoísmo… O cristão conhece tudo e com tudo se enfrenta, cheio de inteireza humana e de fortaleza recebida de Deus.

A consideração da morte de Cristo traduz-se num convite a situarmo-nos, com absoluta sinceridade, perante o nosso trabalho ordinário, a tomarmos a sério a Fé que professamos. A Semana Santa, portanto, não pode ser um parêntesis sagrado no contexto de um viver movido só por interesses humanos: tem de ser uma ocasião para penetrarmos na profundidade do Amor de Deus, para podermos assim, com a palavra e com as obras, mostrá-lo aos outros homens.

Mas o Senhor impõe condições. Há uma declaração sua, que S. Lucas nos conserva, da qual não se pode prescindir: Se alguém quer vir a Mim e não aborrece o pai e a mãe, a mulher e os filhos, os irmãos e as irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. São palavras duras. Decerto nem o odiar nem o aborrecer exprimem bem o pensamento original de Jesus. De qualquer maneira, as palavras do Senhor foram fortes, pois não se reduzem a um amor menor, como por vezes se interpreta temperadamente, para suavizar a frase. É tremenda essa expressão tão taxativa, não porque implique uma atitude negativa ou impiedosa, pois o Jesus que fala agora é o mesmo que manda amar os outros como a própria alma e entrega a sua vida pelos homens: aquela locução indica simplesmente que perante Deus não cabem meias-tintas. Poderiam traduzir-se as palavras de Cristo por amar mais, amar melhor, ou então por não amar com um amor egoísta, nem tão-pouco com um amor de vistas curtas: devemos amar com o Amor de Deus. Disto é que se trata!

Reparemos na última das exigências de Jesus: et animam suam, a vida, a própria alma é o que o Senhor pede.

Se somos fátuos, se nos preocupamos apenas com a nossa comodidade pessoal, se centramos a existência dos outros e até o próprio mundo em nós mesmos, não temos o direito de nos chamarmos cristãos, de nos considerarmos discípulos de Cristo. A entrega tem de se fazer com obras e com verdade, não apenas com a boca. O amor a Deus convida-nos a levarmos a cruz a pulso, a sentir também sobre nós o peso da Humanidade inteira e a cumprirmos, nas circunstâncias próprias do estado e do trabalho de cada um, os desígnios, claros e amorosos ao mesmo tempo, da vontade do Pai. Na passagem que comentamos, Jesus prossegue: Aquele que não carrega com a sua cruz para Me seguir também não pode ser meu discípulo.

Aceitemos sem medo a vontade de Deus, formulemos sem vacilações o propósito de edificar toda a nossa vida de acordo com aquilo que nos ensina e nos exige a nossa fé. Estejamos seguros de que encontraremos luta, sofrimento e dor; mas, se possuirmos de verdade a Fé, nunca nos sentiremos infelizes: também com sofrimentos, e até mesmo com calúnias, seremos felizes, com uma felicidade que nos impelirá a amar os outros para os fazer participar da nossa alegria sobrenatural.

Não quero terminar sem uma última reflexão: o cristão, ao tornar Cristo presente entre os homens, sendo ele mesmo ipse Christus, não procura apenas viver numa atitude de amor, mas também dar a conhecer o Amor de Deus através desse amor humano.

Jesus concebeu toda a sua vida como uma revelação desse amor: Filipe, - respondeu a um dos seus Apóstolos - quem me vê a Mim, vê o Pai. Seguindo esse ensinamento, o Apóstolo João convida os cristãos a que, já que conheceram o amor de Deus, o manifestem com as suas obras: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros; porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece-0. Aquele que não ama não conhece Deus, porque Deus é Amor. Nisto se manifestou o amor de Deus para connosco: em ter enviado o seu Filho unigénito ao mundo para que por Ele vivamos. Nisto consiste o seu amor: não fomos nós que amámos Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou o seu Filho para propiciação pelos nossos pecados. Caríssimos, se Deus nos amou assim, também nos devemos amar uns aos outros.

Cristo na Cruz, com o Coração trespassado de Amor pelos homens, é uma resposta eloquente - as palavras não são necessárias - à pergunta sobre o valor das coisas e das pessoas. Pois valem tanto os homens, a sua vida, a sua felicidade, que o próprio Filho de Deus Se entrega para os remir, para os purificar, para os elevar! Quem não amará o seu coração tão ferido? - perguntava uma alma contemplativa. E continuava a perguntar: Quem não dará amor por amor? Quem não abraçará um Coração tão puro? Nós, que somos de carne, pagaremos amor com amor, abraçaremos o Ferido que encontrámos, Aquele a quem os ímpios atravessaram as mãos e os pés, o lado e o Coração. Peçamos-lhe que Se digne prender o nosso coração com o vínculo do seu amor, feri-lo com uma lança, pois é ainda duro e impenitente.

São pensamentos, afectos e palavras que as almas enamoradas desde sempre dedicaram a Jesus. Mas, para entender essa linguagem, para saber na verdade o que é o coração humano e o Coração de Cristo e o amor de Deus, são precisas a Fé e a humildade. Foi com Fé e humildade que Santo Agostinho escreveu para nós estas palavras universalmente famosas: criastes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto enquanto em Vós não repousa.

Quando não cultiva a humildade, o homem pretende apropriar-se de Deus, mas não dessa maneira divina que o próprio Cristo tomou possível ao dizer tomai e comei: isto é o meu Corpo;antes, tentando reduzir a grandeza divina aos limites humanos. A razão - razão fria e cega, que não é a inteligência nascida da Fé, nem sequer a recta inteligência da criatura capaz de saborear e amar as coisas - converte-se na sem-razão de quem tudo submete à sua pobre experiência vulgar, que amesquinha a verdade humana e cobre o coração do homem com uma crosta insensível às inspirações do Espírito Santo. A nossa pobre inteligência estaria perdida, se não fosse o poder misericordioso de Deus, que rasga as fronteiras da nossa miséria: hei-de dar-vos um coração novo e revestir-vos de um novo espírito; hei-de tirar-vos o vosso coração de pedra e dar-vos em seu lugar um coração de carne. E a alma recuperará a luz e há-de encher-se de alegria, por força das promessas da Sagrada Escritura.

Eu tenho pensamentos de paz e não de aflição, declarou Deus pela boca do profeta Jeremias. A Liturgia aplica estas palavras a Jesus, porque n'Ele se nos manifesta com toda a clareza que é assim que Deus nos ama. Não vem condenar-nos; não vem para nos lançar em rosto a nossa indigência ou a nossa mesquinhez: vem salvar-nos, perdoar-nos, desculpar-nos, trazer-nos a paz e a alegria. Se reconhecermos esta maravilhosa relação do Senhor com os seus filhos, os nossos corações mudarão com certeza e veremos abrir-se diante dos nossos olhos um horizonte absolutamente novo, cheio de relevo, de profundidade e de luz.