Com a força do amor

Misturado com a multidão, um daqueles peritos que já não conseguiam discernir os ensinamentos revelados a Moisés, ensinamentos emaranhados por eles próprios numa casuística estéril, faz uma pergunta ao Senhor. Abre Jesus os seus lábios divinos para falar àquele doutor da Lei e responde-lhe pausadamente, com a firme certeza de quem tem disso viva experiência: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu espírito. Este é o maior e o primeiro dos mandamentos. O segundo é semelhante a este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos estão contidos toda a Lei e os profetas.

Vede agora o mestre reunido com os seus discípulos na intimidade do Cenáculo. Ao aproximar-se o momento da sua Paixão, o Coração de Cristo, rodeado por aqueles que ama, abre-se em inefáveis labaredas: dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros e que, do mesmo modo que eu vos amei, vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.

Para vos aproximardes do Senhor através das páginas do Santo Evangelho, recomendo sempre que vos esforceis por participar em cada cena como um personagem mais. Assim - conheço tantas almas normais e correntes que o fazem! - recolher-vos-eis como Maria, suspensa das palavras de Jesus, ou, como Marta, atrever-vos-eis a manifestar-lhe sinceramente as vossas inquietações, mesmo as mais pequenas .

Senhor, porque chamas novo a este mandamento? Como acabamos de ouvir, o amor ao próximo estava prescrito no Antigo Testamento e recordareis também que Jesus, mal começa a sua vida pública, amplia essa exigência com divina generosidade: ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo. Eu peço-vos mais: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos aborrecem e orai pelos que vos perseguem e caluniam.

Senhor, deixa-nos insistir: porque continuas a chamar novo a este preceito? Naquela noite, poucas horas antes de te imolares na Cruz, durante aquela conversa íntima com os que - apesar das suas fraquezas e misérias pessoais, como as nossas - te acompanharam até Jerusalém. Tu revelaste-nos a medida insuspeitada da caridade: como eu vos amei. Como não haviam de te entender os Apóstolos, se tinham sido testemunhas do teu amor insondável!

O ensinamento e o exemplo do Mestre são claros e precisos. Sublinhou com obras a sua doutrina. E, no entanto, tenho pensado muitas vezes que, passados vinte séculos, ainda continua a ser um mandamento novo, porque muito poucos homens se têm preocupado em levá-lo à prática; os restantes, a maioria, preferiram e preferem desconhecê-lo. Com um egoísmo exacerbado, perguntam: - Para quê mais complicações? Já me bastam as que tenho com as minhas coisas.

Não é admissível semelhante atitude entre os cristãos. Se professamos essa mesma fé, se ambicionamos verdadeiramente seguir as pegadas, tão nítidas, que os passos de Cristo deixaram na terra, não podemos conformar-nos com evitar aos outros os males que não desejamos para nós mesmos. Isto é muito, mas é muito pouco, quando compreendemos que a medida do nosso amor é definida pelo comportamento de Jesus. Além disso, Ele não nos propõe essa norma de conduta como uma meta longínqua, como o coroamento de toda uma vida de luta. É - e insisto que deve sê-lo para que o traduzas em propósitos concretos - o ponto de partida, porque Nosso Senhor o indica como sinal prévio: nisto conhecerão que sois meus discípulos.

Jesus Cristo, Nosso Senhor, encarnou e tomou a nossa natureza, para se mostrar à humanidade como modelo de todas as virtudes. Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, convida-nos Ele.

Mais tarde, quando explica aos Apóstolos o sinal pelo qual os reconhecerão como cristãos, não diz: porque sois humildes. Ele é a pureza mais sublime, o Cordeiro imaculado. Nada podia manchar a sua santidade perfeita, sem mácula. Mas também não diz: saberão que se encontram diante de discípulos meus, porque sois castos e limpos.

Passou por este mundo com o mais completo desprendimento dos bens da terra. Sendo Criador e Senhor de todo o universo, faltava-lhe até um sítio onde pudesse reclinar a cabeça. No entanto, não comenta: saberão que sois dos meus porque não vos apegastes às riquezas. Permanece quarenta dias e quarenta noites no deserto em jejum rigoroso, antes de se dedicar à pregação do Evangelho. E também não afirma aos seus: compreenderão que servis a Deus, porque não sois comilões nem bebedores.

A característica que distinguirá os apóstolos, os cristãos autênticos de todos os tempos, já a ouvimos: nisto - precisamente nisto - conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.

Parece-me perfeitamente lógico que os filhos de Deus se tenham sentido sempre comovidos - como tu e eu neste momento - perante essa insistência do Mestre. O Senhor não estabelece como prova de fidelidade dos seus discípulos os prodígios ou os milagres inauditos, apesar de lhes ter conferido o poder de os realizarem, pelo Espírito Santo. O que lhes comunica? Conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.

Pedagogia Divina

Não odiar o inimigo, não devolver mal por mal, renunciar à vingança, perdoar sem rancor considerava-se então - e também agora, não nos enganemos - uma conduta insólita, demasiado heróica, fora do normal. Até aqui chega a mesquinhez das criaturas! Jesus Cristo, que veio salvar todos os povos e deseja associar os cristãos à sua obra redentora, quis ensinar aos seus discípulos - a ti e a mim - uma caridade grande, sincera, mais nobre e valiosa: devemos amar-nos mutuamente como Cristo nos ama a cada um de nós. Só desta maneira, isto é, imitando o exemplo divino - dentro da nossa rudeza pessoal - conseguiremos abrir o nosso coração a todos os homens, amar de um modo mais elevado, inteiramente novo.

Que bem puseram os primeiros cristãos em prática esta caridade ardente, caridade que sobressaía e transbordava dos limites da simples solidariedade humana ou da benignidade de carácter. Amavam-se uns aos outros de modo afectuoso e forte, através do Coração de Cristo. Um escritor do século II, Tertuliano, transmitiu-nos o comentário dos pagãos, comovidos ao presenciarem o comportamento dos fiéis de então, tão cheio de atractivo sobrenatural e humano: Vede como se amam, repetiam.

Se notas que não mereces esse louvor agora ou em tantas ocasiões do dia-a-dia; que o teu coração não reage como devia às exigências divinas, pensa também que chegou o momento de rectificares. Ouve o convite de S. Paulo: façamos o bem a todos e especialmente àqueles que pertencem, mediante a fé, à mesma família que nós, ao Corpo Místico de Cristo.

O principal apostolado que nós, os cristãos, temos de realizar no mundo, o melhor testemunho de fé é contribuir para que dentro da Igreja se respire o clima de autêntica caridade. Quando não nos amamos verdadeiramente, quando há ataques, calúnias e inimizades, quem se sentirá atraído pelos que afirmam que pregam a Boa Nova do Evangelho?

É muito fácil, está muito na moda afirmar verbalmente o amor a todas as criaturas, crentes e não crentes. Mas se quem fala assim maltrata os irmãos na fé, duvido de que na sua conduta haja mais do que palavreado hipócrita. Pelo contrário, quando amamos no Coração de Cristo os que são filhos de um mesmo Pai, associados na mesma fé e herdeiros de uma mesma esperança, a nossa alma engrandece-se e arde em desejos de que todos se aproximem de Nosso Senhor.

Estou a recordar-vos as exigências da caridade e talvez algum de vós tenha pensado que falta precisamente essa virtude nas palavras que acabo de pronunciar. Nada mais oposto à realidade. Posso garantir-vos que, com santo orgulho e sem falsos ecumenismos, me enchi de alegria quando, no passado Concílio Vaticano II, ganhava corpo com renovada intensidade a preocupação de levar a verdade aos que andam afastados do único Caminho, do de Jesus, pois me consome a ânsia de que se salve toda a humanidade.

Sim, foi bem grande a minha alegria, porque também via confirmado novamente um apostolado tão da predilecção do Opus Dei, o apostolado ad fidem, que não rejeita nenhuma pessoa e admite os não cristãos, os ateus, os pagãos a participarem, na medida do possível, dos bens espirituais da nossa Associação*. Isto tem uma longa história, de dor e de lealdade, que já contei em outras ocasiões. Por isso repito, sem medo, que considero um zelo hipócrita, embusteiro, o que impele a tratar bem os que estão longe, pisando ou desprezando os que vivem connosco a mesma fé. Também não acredito que te interesses pelo pobre mais pobre da rua, se martirizas os de tua casa, se és indiferente às suas alegrias, às suas penas e aos seus desgostos e se não te esforças por compreender ou por passar por alto os seus defeitos, sempre que não sejam ofensa a Deus.

Não vos comove que o Apóstolo João, sendo já velho, passe a maior parte de uma das suas epístolas a exortar-nos a que nos comportemos de acordo com essa doutrina divina? O amor que deve haver entre os cristãos provém de Deus, que é Amor. Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade procede de Deus, e todo o que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. O que não ama, não conhece a Deus; porque Deus é Amor. Insiste de forma particular na caridade fraterna, pois por Cristo nos tornamos filhos de Deus: vede que amor nos mostrou o Pai, querendo que nos chamemos filhos de Deus e que o sejamos.

E enquanto toca com toda a veemência as nossas consciências para que se tornem mais sensíveis à graça divina, insiste em que recebemos uma prova maravilhosa do amor do Pai pelos homens: nisto se manifestou a caridade de Deus para connosco, em que Deus enviou o seu Filho Unigénito ao mundo para que por Ele tenhamos a vida . O Senhor tomou a iniciativa, vindo ao nosso encontro. Deu-nos o exemplo para nos pormos com Ele ao serviço dos outros, para - gosto de repetir - pormos generosamente o nosso coração a servir de alcatifa, de modo que os outros caminhem suavemente e a sua luta resulte para eles mais amável. Devemos comportar-nos assim, porque somos filhos do mesmo Pai, que não hesitou em entregar-nos o seu Filho muito amado.

Não somos nós que construímos a caridade; é ela que nos invade com a graça de Deus: porque Ele nos amou primeiro. Convém que nos empapemos bem desta verdade formosíssima: se podemos amar a Deus é porque fomos amados por Deus. Tu e eu estamos em condições de derramar carinho sobre os que nos rodeiam, porque nascemos para a fé pelo amor do Pai. Pedi com ousadia ao Senhor este tesouro, esta virtude sobrenatural da caridade, para a exercitardes até ao último pormenor.

Nós, os cristãos, não temos sabido muitas vezes corresponder a esse dom; algumas vezes temo-lo rebaixado como se se limitasse a uma esmola dada sem alma, friamente; outras vezes temo-lo reduzido a uma atitude de beneficência mais ou menos convencional. Exprimia bem esta aberração a queixa resignada de uma doente: Aqui, tratam-me com caridade, mas a minha mãe cuidava de mim com carinho. O amor que nasce do Coração de Cristo não pode dar lugar a este tipo de distinções.

Para que, de uma forma gráfica, esta verdade ficasse bem gravada na vossa mente, preguei milhares de vezes que nós não temos um coração para amar a Deus e outro para amar as criaturas. Este nosso pobre coração feito de carne, ama com um carinho humano, que, se está unido ao amor de Cristo, também é amor sobrenatural. Essa, e não outra, é a caridade que temos de cultivar na alma, a qual nos levará a descobrir nos outros a imagem de Nosso Senhor.

Universalidade da caridade

Com o nome de próximo - diz S. Leão Magno - não havemos de considerar só os que se unem a nós pelos laços da amizade ou do parentesco, mas todos os homens, com os quais possuímos uma natureza comum… Um só Criador nos fez, um só Criador nos deu a alma. Todos podemos desfrutar do mesmo céu e do mesmo ar, dos mesmos dias e das mesmas noites e, embora uns sejam bons e outros maus, uns justos e outros injustos, Deus, no entanto, é generoso e benigno com todos.

Nós, os filhos de Deus, forjamo-nos na prática desse mandamento novo, aprendemos na Igreja a servir e a não ser servidos e encontramo-nos com forças para amar a humanidade de um modo novo, que todos reconhecerão como fruto da graça de Cristo. O nosso amor não se confunde com uma atitude sentimental, nem com a simples camaradagem, nem com o afã pouco claro de ajudar os outros para demonstrarmos a nós mesmos que somos superiores. O nosso amor exprime-se em conviver com o próximo, em venerar - insisto - a imagem de Deus que há em cada homem, procurando que também ele a contemple, para que saiba dirigir-se a Cristo.

A universalidade da caridade significa, por isso, universalidade do apostolado: tradução pela nossa parte, em obras e em verdade, do grande empenho de Deus, que quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.

Se temos de amar também os inimigos - refiro-me aos que nos colocam entre os seus inimigos; eu não me sinto inimigo de ninguém nem de nada - com maior razão teremos de amar os que apenas estão afastados, os que nos são menos simpáticos, os que pela sua língua, pela sua cultura ou pela sua educação parecem o oposto de ti ou de mim.

De que amor se trata? A Sagrada Escritura fala de dilectio, para que se entenda bem que não se refere apenas ao afecto sensível. É mais uma determinação firme da vontade. Dilectio deriva de electio, de escolher. Eu acrescentaria que amar, em sentido cristão, significa querer querer, decidir-se em Cristo a procurar o bem das almas sem discriminação de qualquer género, conseguindo para elas antes de mais o que há de melhor: que conheçam a Cristo e que se apaixonem por Ele.

O Senhor urge-nos: portai-vos bem com os que vos aborrecem e orai pelos que vos perseguem e caluniam. Podemos não nos sentir humanamente atraídos pelas pessoas que nos afastariam, se nos aproximássemos delas. Mas Jesus exige que não lhes devolvamos mal por mal; que não desperdicemos as ocasiões de as servir com o coração, ainda que nos custe; e que não deixemos nunca de as ter presentes nas nossas orações.

Essa dilectio, essa caridade, enche-se de matizes mais profundos quando se refere aos irmãos na fé, especialmente aos que, porque Deus assim o estabeleceu, trabalham mais perto de nós: os pais, o marido ou a mulher, os filhos e os irmãos, os amigos e os colegas, os vizinhos. Se não existisse este carinho, amor humano nobre e limpo, ordenado a Deus e n'Ele fundamentado, não haveria caridade.

Manifestações do amor

Agrada-me citar umas palavras que o Espírito Santo nos comunica pela boca do profeta Isaías: discite benefacere, aprendei a fazer o bem. Costumo aplicar este conselho aos diferentes aspectos da nossa luta interior, pois a vida cristã nunca se dá por terminada, visto que o crescimento nas virtudes se obtém como consequência de um empenho efectivo e quotidiano pela santidade.

Como aprendemos nós a realizar qualquer trabalho na sociedade? Primeiro examinamos o fim desejado e os meios para o alcançar. Depois perseveramos no uso desses recursos repetidamente até criarmos um hábito arraigado e firme. Quando aprendemos alguma coisa, descobrimos outras que ignorávamos e constituem um estímulo para continuarmos esse trabalho, sem nunca dizermos "basta".

A caridade para com o próximo é uma manifestação do amor a Deus. Por isso, ao esforçarmo-nos por melhorar nesta virtude, não podemos fixar nenhum limite. Com o Senhor, a única medida é amar sem medida, pois, por um lado jamais chegaremos a agradecer suficientemente o que Ele tem feito por nós e, por outro, assim se revela o mesmo amor de Deus às suas criaturas: com excesso, sem cálculo, sem fronteiras.

A todos os que estamos dispostos a abrir-lhe os ouvidos da alma, Jesus Cristo ensina no Sermão da Montanha o mandato divino da caridade. E, ao terminar, como resumo, explica: amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestai sem esperardes nada em troca, e será grande a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom, mesmo com os ingratos e os maus. Sede, pois, misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso.

A misericórdia não se limita a uma simples atitude de compaixão; a misericórdia identifica-se com a superabundância da caridade que, ao mesmo tempo, traz consigo a superabundância da justiça. Misericórdia significa manter o coração em carne viva, humana e divinamente repassado por um amor rijo, sacrificado e generoso. Assim glosa S. Paulo a caridade no seu canto a esta virtude: A caridade é paciente, é benéfica; a caridade não é invejosa, não actua precipitadamente; não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não pensa mal dos outros, não folga com a injustiça, mas compraz-se na verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.

Uma das suas primeiras manifestações concretiza-se em iniciar a alma nos caminhos da humildade. Quando sinceramente nos consideramos nada; quando compreendemos que, se não tivéssemos o auxílio divino, a mais débil e fraca das criaturas seria melhor do que nós; quando nos vemos capazes de todos os erros e de todos os horrores; quando nos reconhecemos pecadores, embora lutemos com empenho por nos afastarmos de tantas infidelidades, como havemos de pensar mal dos outros? Como se poderá alimentar no coração o fanatismo, a intolerância, o orgulho?

A humildade leva-nos pela mão a tratar o próximo da melhor forma: compreender a todos, conviver com todos, desculpar a todos; não criar divisões nem barreiras; comportarmo-nos - sempre! - como instrumentos de unidade. Não é em vão que existe no fundo do homem uma forte aspiração à paz, à união com os seus semelhantes e ao respeito mútuo pelos direitos da pessoa, de modo que tal aspiração se transforme em fraternidade. Isto reflecte uma nota característica do que há de mais valioso na condição humana: se todos somos filhos de Deus, a fraternidade nem se reduz a uma figura de retórica, nem consiste num ideal ilusório, pois surge como meta difícil, mas real.

Perante os cínicos, os cépticos, os insensíveis, os que fizeram da sua cobardia um modo de pensar, nós, os cristãos, havemos de demonstrar que esse carinho é possível. Existem talvez muitas dificuldades para nos comportarmos deste modo, pois o homem foi criado livre e tem a possibilidade de se levantar inútil e amargamente contra Deus; mas esse caminho é possível e é real, porque tal conduta nasce necessariamente como consequência do amor de Deus e do amor a Deus. Se tu e eu quisermos, Jesus Cristo também o quer. Então compreenderemos, em toda a sua profundidade e com toda a sua fecundidade, a dor, o sacrifício, a entrega desinteressada na convivência diária com os outros.

O exercício da caridade

Pecaria por ingenuidade quem imaginasse que as exigências da caridade cristã se cumprem facilmente. É bem diferente o que nos diz a experiência, quer no âmbito das ocupações habituais dos homens, quer, por desgraça, no âmbito da Igreja. Se o amor não nos obrigasse a calar, cada um de nós teria muito que contar de divisões, de ataques, de injustiças, de murmurações e de insídias. Temos de o admitir com simplicidade, para tratar de aplicar, pela parte que nos corresponde, o remédio oportuno, que se há-de traduzir num esforço pessoal por não ferir, por não maltratar, por corrigir sem deixar ninguém esmagado.

Não são problemas de hoje. Poucos anos depois da Ascensão de Cristo aos céus, quando ainda andavam de um lugar para outro todos os Apóstolos e era geral um admirável fervor de fé e de esperança, já muitos, no entanto, começavam a desencaminhar-se e a não viver a caridade do Mestre.

Havendo entre vós rivalidades e discórdias - escreve S. Paulo aos de Corinto - não é notório que sois carnais e procedeis como homens? Porque, quando um diz: eu sou de Paulo, e outro: eu sou de Apolo, não estais a mostrar que ainda sois homens carnais que não compreendem que Cristo veio para superar todas essas divisões? Quem é Apolo? Quem é Paulo? Ministros daquele em quem vós crestes e isso segundo a medida que o Senhor concedeu a cada um.

O Apóstolo não rejeita a diversidade: cada um tem de Deus o seu próprio dom; um de um modo e outro de outro. Mas essas diferenças têm de estar ao serviço do bem da Igreja. Sinto-me inclinado agora a pedir ao Senhor - se quiserdes unir-vos a esta minha oração - que não permita que na sua Igreja a falta de amor semeie joio nas almas. A caridade é o sal do apostolado dos cristãos; se perde o sabor, como poderemos apresentar-nos ao mundo e explicar, de cabeça erguida, que aqui está Cristo?

Portanto, repito-vos com S. Paulo: ainda que eu falasse as línguas dos homens e a linguagem dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que ressoa ou como o címbalo que tine. E ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e possuísse toda a ciência, e tivesse toda a fé, de modo a mover montanhas, se não tiver caridade, não sou nada. E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, nada me aproveita .

Perante estas palavras do Apóstolo dos gentios, não faltam os que se assemelham àqueles discípulos de Cristo, que, ao anunciar-lhes Nosso Senhor o Sacramento da sua Carne e do seu Sangue, comentaram: - É dura esta doutrina; quem a pode escutar?. É dura, sim. Porque a caridade que o Apóstolo descreve não se limita à filantropia, ao humanitarismo ou à natural comiseração pelo sofrimento alheio; exige a prática da virtude teologal do amor a Deus e do amor, por Deus, aos outros. Por isso, a caridade nunca deixará de existir, ao passo que as profecias terminarão, as línguas cessarão e a ciência acabará… Agora permanecem estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade; mas, das três, a caridade é a mais excelente.

O único caminho

Já nos convencemos de que a caridade nada tem a ver com essa caricatura que às vezes se tem pretendido traçar da virtude central da vida cristã. Mas perguntamos agora: porque se exige pregá-la constantemente? Será uma espécie de tema obrigatório, mas com poucas possibilidades de se manifestar em factos concretos?

Olhando à nossa volta, talvez descobríssemos razões para pensar que a caridade é realmente uma virtude ilusória. Mas considerando as coisas com sentido sobrenatural, descobrirás também a raiz dessa esterilidade, que se cifra numa ausência de convívio intenso e contínuo, de tu a tu, com Nosso Senhor Jesus Cristo, e no desconhecimento da acção do Espírito Santo na alma, cujo primeiro fruto é precisamente a caridade.

Recolhendo um conselho do Apóstolo - levai uns as cargas dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo - acrescenta um Padre da Igreja: amando a Cristo, suportaremos facilmente a fraqueza dos outros, mesmo a daquele a quem ainda não amamos, porque não tem boas obras .

Por aí se eleva o caminho que nos faz crescer na caridade. Enganar-nos-íamos se imaginássemos que primeiro temos de nos exercitar em actividades humanitárias, em trabalhos de assistência, excluindo o amor do Senhor. Não descuidemos Cristo por causa do próximo que está enfermo, uma vez que devemos amar o enfermo por causa de Cristo.

Olhai constantemente para Jesus, que, sem deixar de ser Deus, se humilhou tomando a forma de servo para nos poder servir, porque só nessa mesma direcção se abrem os afãs por que vale a pena lutar. O amor procura a união, a identificação com a pessoa amada; e, ao unirmo-nos com Cristo, atrair-nos-á a ânsia de secundar a sua vida de entrega, de amor sem medida, de sacrifício até à morte. Cristo coloca-nos perante o dilema definitivo: ou consumirmos a existência de uma forma egoísta e solitária ou dedicarmo-nos com todas as forças a uma tarefa de serviço.

Vamos pedir agora ao Senhor, para terminar este tempo de conversa com Ele, que nos conceda poder repetir com S. Paulo que triunfamos por virtude daquele que nos amou. Pelo qual estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem o presente, nem o futuro, nem a força, nem o que há de mais alto, nem de mais profundo, nem qualquer outra criatura poderá jamais separar-nos do amor de Deus que está em Jesus Cristo Nosso Senhor .

Este amor também a Escritura o canta com palavras inflamadas: as águas copiosas não puderam extinguir a caridade, nem os rios afogá-la. Este amor encheu sempre o Coração de Santa Maria, ao ponto de enriquecê-la com entranhas de Mãe para toda a humanidade. Em Nossa Senhora o amor a Deus confunde-se com a solicitude por todos os seus filhos. O seu Coração dulcíssimo teve de sofrer muito, atento aos mínimos pormenores - não têm vinho - ao presenciar aquela crueldade colectiva, aquele encarniçamento dos verdugos, que foi a Paixão e Morte de Jesus. Mas Maria não fala. Como o seu Filho, ama, cala e perdoa. Essa é a força do amor.

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